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19 março 2018
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Alexandre Vaz Fotografia de Alexandre Vaz

Todo o tempo do mundo

​​​​Há tempo para tudo, até para descobrir outros tempos.

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​É Inverno, mas os campos mantêm alguns dos tons dourados do Estio. Quadrados de terra castanha e vermelha prendem o olhar aqui ali, até desaparecerem em camadas na planura da paisagem. E há, claro, as azinheiras e os sobreiros, árvores de troncos fortes e copas verdes e belas, perfeitas sob o Sol. É quando os montados se sucedem que sentimos o lugar onde estamos: o Alentejo profundo, ancestral, pacífico, onde o tempo parece cronometrado com relógios diferentes.

Há tempo para tudo, até para descobrir outros tempos. Como o Megalítico, ocorrido há milhares de anos e que, em terras de Reguengos de Monsaraz, a cerca de 40 quilómetros de Évora, espera ser descoberto para contar histórias dos nossos antepassados.

Rui Aparício, farmacêutico ribatejano de 57 anos, que se apaixonou por Monsaraz há mais de 30, é o contador das histórias e memórias do seu Alentejo. Recebe-nos na vila erguida sobre um monte, eleita em Setembro aldeia-monumento no concurso “7 Maravilhas de Portugal”, promovido pela RTP.

Das muralhas da vila medieval, ou ‘Monte Saris’, como a nomearam os mouros que a ocuparam até 1167, há beleza até onde o olhar alcança. «Chamaram-na assim devido à abundância de estevas. Na Primavera, conseguimos ver grandes extensões de estevas em flor», conta o farmacêutico.

Por estes dias, as estevas não estão floridas, mas a paisagem continua bela. Vê-se montes, alguns povoados, campos e campos a perder de vista, Espanha a poucos quilómetros, lá em baixo o Alqueva. E também a Adega Cooperativa de Reguengos de Monsaraz (Carmim). A produção do néctar dos deuses é um dos grandes orgulhos da região, diz Rui, para logo acrescentar que está longe de ser o único. Acreditamos.

Nas terras contíguas ao grande lago em que se transformou o rio Guadiana há uma era, anterior à invenção do vinho, à espera de ser descoberta. Nesse tempo de magia, os nossos antepassados acreditavam que conseguiriam melhores colheitas fecundando a terra com enormes pedras fálicas. E erguiam antas funerárias para garantir uma morada após a morte.

Partimos à descoberta da Idade do Bronze no Olival da Pega. No caminho, a aldeia de São Pedro do Corval impõe uma visita. As cores vivas e o modo de ser e viver alentejano estão expostos em pratos pendurados nas paredes do casario térreo. «São Pedro do Corval tem a maior concentração de olarias do país», comenta Rui, visivelmente orgulhoso.

Pouco depois, nova paragem à beira da estrada, na chamada Pedra dos Namorados, formação geológica de grandes dimensões semelhante a um cogumelo gigante. «Segundo a tradição, as raparigas casadoiras vinham aqui atirar pedras para o rochedo. Se as pedras ficassem lá em cima, arranjavam marido», conta o farmacêutico, a sorrir.

Finalmente, chegamos ao conjunto megalítico do Olival da Pega. Datado de 3.500 a.C. a 3.000 a.C. e constituído pelas Antas 1 e 2, foi um grande complexo funerário. Durante o seu estudo, foram encontradas 134 placas de xisto e 200 vasos cerâmicos, além de uma necrópole colectiva onde estariam sepultadas 158 pessoas. E porque é de um olival que se fala, é impossível não reparar nas oliveiras, algumas milenares, em redor das antas. Não admira que esta região seja reconhecida pela excelência do azeite.

Na aldeia do Outeiro, há um dos maiores menires de Portugal. Encontrada tombada em 1964, esta pedra de granito com 5,6 metros de altura foi então restaurada e reerguida. Os estudos arqueológicos revelaram que teria funcionado como objecto de rituais de fertilidade.



Entre a adormecida aldeia do Telheiro, com o seu lavadouro público de um lado da estrada e a fonte setecentista com o branco e o azul típicos do Alentejo do outro, e Monsaraz, há outro testemunho dos tempos mágicos que permaneceu nestas terras: o Cromeleque do Xerez. «Tem a particularidade de ter sido transportado para aqui aquando da construção da barragem do Alqueva», esclarece Rui.

Mais de 50 menires, uns de configuração fálica, outros em forma de amêndoa, estão dispostos em torno de um menir central com aproximadamente de 4,5 metros de altura. Datado de cerca de inícios de 4.000 a.C. a 3.000 a.C., também foi, acreditam os especialistas, alvo de rituais de fertilidade.

Avançamos mil anos na máquina do tempo, até à romanização da Península Ibérica, à descoberta do modo de fazer vinho alentejano. «A Carmim é a maior adega do Alentejo e uma das maiores da Europa», apresenta o guia, Luís Nobre.

Tudo começou em 1971, ano da criação da adega da Cooperativa Agrícola de Reguengos. «Estávamos em finais de uma ditadura. As pessoas tinham os seus talhões de terra com algum olival, vinha, cereais. As uvas eram apenas um dos produtos da terra. Doze dos agricultores notaram que essa matéria-prima obtida das cepas [tronco da videira de onde brotam os rebentos] era de alta qualidade, originando, por sua vez, um produto de excelência, o vinho. E uniram esforços por essa causa. Daí para cá fomos crescendo», conta o guia. 

Cresceram muito. Hoje, a Carmim conta com uma área de 3.600 hectares de vinha e 850 associados. Todos os anos saem desta adega cerca de 33 milhões de litros de vinho.

Outra das apostas da cooperativa é o azeite, continua Luís. «Produzimos em média 220 mil litros de azeite por ano. É pouco, mas com muita qualidade. Competimos com os melhores azeites a nível nacional, os DOP [Denominação de Origem Protegida]».

A tarde termina na Herdade do Esporão, onde o guitarrista Grutera, alter ego de Guilherme Efe, gravou “Sur Lie”, que ganhou o nome em homenagem ao processo de envelhecimento do vinho em barrica.

Vera Simões é a simpática anfitriã da visita pelas vinhas. «Fazemos a vindima de Agosto a Outubro, mas este ano tivemos de apressar as coisas por causa do calor. Terminámos em Setembro», conta, mostrando as enormes cubas e máquinas que possibilitam a produção dos vinhos Esporão.

«Aqui em baixo, ficamos com a uva esmagada. E depois decidimos o que fazer com ela, se a pisa a pé ou mecânica». Na herdade, explica Vera, ainda se faz a pisa a pé «para as melhores castas, com maior potencial de produção». Este método permite observar o comportamento da uva e acompanhar o processo de fermentação, preservando a tradição. A pisa mecânica é usada para grandes volumes. Todos os anos, a Herdade do Esporão produz entre 13 e 15 mil litros de vinho.

Chegamos a uma adega com cubas de cimento, que permitem uma oxigenação lenta. «Cada uma delas produz parte do mesmo seleccionado, alguns monocastas, algumas experiências…». E há as talhas, um regresso ao passado, como ela lhe chama: «Esta forma de produzir vinhos foi trazida pelos romanos há mais de dois mil anos, aquando da ocupação da Península Ibérica, e continuou no Alentejo. Temos muitas famílias que produzem os seus vinhos dessa forma, muitos restaurantes. E, cada vez mais, as pessoas estão a aprender a apreciar vinho da talha. São vinhos muito fortes, com taninos fortes, muita acidez, frutos vermelhos acentuados, muito álcool. Ou se gosta ou se odeia».



Da produção, passamos ao estágio em barrica, a sete metros de profundidade e temperatura constante de 18 graus. Ao descer à cave, a sensação é semelhante à de entrar num templo. A sucessão de barricas sobrepostas, a começarem em enormes painéis que mostram os campos alentejanos e terminarem em novas paisagens alentejanas, dá a sensação de infinito, de ligação profunda à terra de onde vem o vinho.

Logo à entrada, pequenos potes com pedaços de carvalho francês e americano, as árvores utilizadas na tanoaria das barricas da Herdade do Esporão, introduzem a esta paixão. «O carvalho francês tem aromas a especiarias, a cravinho, a pimentas. É mais fino, entra mais oxigénio e mais depressa. E depois temos o carvalho americano, mais grosso, com menor e mais lenta entrada de oxigénio, com aromas próximos ao coco, à baunilha, ao caramelo…». Confirma-se. Os vinhos ficam aqui «oito, 12, 18 meses», precisa Vera, no corredor que parece não acabar nunca.

Foi este o túnel, onde estão sobrepostas, em geometria perfeita, entre 2.500 e 3.000 barricas, escolhido por Grutera para dar corpo à música da sua guitarra no terceiro disco a solo.

Logo a seguir à cave com as cubas dos vinhos monocasta produzidos na herdade, novo lanço de escadas conduz a outra fase do processo: o amadurecimento dos vinhos em garrafa, 30 metros abaixo do solo.

Projectado por Pedro Jervell, este espaço recria a arquitectura do metropolitano de Lisboa.

De ambos os lados, há garrafas de vinho. «São 300 mil», precisa a guia. Ao centro, uma mesa circular de provas, a lembrar a do Rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda, convida a imaginação a voar. «É uma cave de 1987, foi remodelada a pensar no futuro do Esporão. Servirá para recebermos os nossos convidados, fazer uma prova de vinhos, fazendo-os sentir cada vez mais próximos do Esporão». Este salão exclusivo estará disponível a partir de 2018.

O entardecer cobre os campos com o seu manto suave no regresso a Monsaraz, com o seu altivo castelo iluminado, ruas em xisto e casas caiadas, algumas com brasão, e a bela Igreja de Nossa Senhora da Lagoa. «Gosto de sair de casa e ter a sensação de estar numa época distante. Monsaraz consegue ter esse efeito nas pessoas, está bem preservada. Sinto sempre um grande prazer em passear por aqui», diz o farmacêutico Rui. Quase se sente o eco de outros tempos, quando Geraldo Sem Pavor a conquistou aos mouros em 1167. Seria D. Sancho II a recuperá-la definitivamente, em 1232, ajudado pelos cavaleiros templários, aos quais acabou por doar ‘Monte Saris’.



Jantamos, precisamente, na Taverna “Os Templários”, na Rua Direita. A vista sobre a paisagem, incluindo o grande lago em que se transformou o Guadiana, é soberba, com os seus dourados, pontuados aqui e ali por verdes e vermelhos, casas, outros montes. «Espanha é logo ali», aponta Rui.
Começa a escurecer quando chegam as bochechas de porco e o vinho — alentejano, claro está. É chegada a hora de olhar o céu negro, estrelado, infinito, como se pode ver apenas no Alentejo pouco povoado. Com todo o tempo do mundo.
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