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4 março 2018
Texto de Maria João Veloso Texto de Maria João Veloso Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Tem mão para a dança

​​​​​​Uma campanha de crowdfunding permitiu cumprir o sonho de André Speedy Garcia.

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Agosto de 2017 terá sido o melhor Verão para André Speedy Garcia. Passou um mês nos Estados Unidos da América, entre Filadélfia e Nova Iorque. Na cidade do amor fraternal, a Advanced Arm Dynamics, uma empresa especializada em próteses para atletas de alta competição, desenvolveu uma prótese para André, bailarino e breakdancer de profissão, que nasceu sem o antebraço direito. Já na cidade que nunca dorme, aproveitou para experimentar o melhor da cultura norte-americana, desde aulas de dança contemporânea e Gaga Dance Classes, até à tour que realizou pelos lugares onde nasceu a cultura hip-hop e o breakdance. Deliciou-se num festival de música afro-americana em Brooklyn. No périplo não faltou a visita à cadeia Shake Shack, onde provou o melhor hambúrguer de sempre, mesmo sendo vegetariano.
 
«Voltei para Portugal com o sonho realizado e a cabeça expandida». O corpo então nem se fala. Chamaram “Uma mão pela arte” à campanha de crowdfunding que pagou a prótese. Juntou-se à causa a Associação Dê Mais Coração, o músico Slow J e o Projecto Sente Isto, que reuniram o montante que faltava para pagar todas as despesas relacionadas com a viagem.
 

 
Nascido em Chaves há 31 anos, André veio ao mundo sem o antebraço direito, uma deficiência congénita devido a uma incompatibilidade sanguínea entre os pais. «O facto de não ter o antebraço não me limitou praticamente nada na minha infância», conta. Os pais sempre o trataram como uma pessoa normal e é assim que ele se vê. «Tornou-se uma espécie de jogo, a maneira como eu conseguia cumprir as tarefas. Desde atar a sapatilha até fazer a minha própria sanduíche. Era um desafio». Em casa recebeu força, disciplina e uma herança musical que iria determinar o seu percurso.
 
O pai toca saxofone, a irmã toca flauta transversal, a mãe dançava e os avós integravam o rancho de Valpaços. «Sempre gostei imenso de música e de videoclipes, e quando descobri uns com dança fiquei viciado e comecei a experimentar.» De repente passou de uma simples brincadeira para uma actividade a tempo inteiro. Numa tarde de Verão, em Palmela, vila onde cresceu, o videoclipe “Ghost”, de Michael Jackson, impressionou-o de forma inesquecível. Não só pela estética, mas por estar diante de um génio. «Depois de ver aqueles passos de dança, tentei copiá-los.» O bichinho da dança começava a fazer das suas. Bastou-lhe ver outro vídeo com um sketch de bailarinos a rodar de costas e a fazer aqueles movimentos acrobáticos típicos, e foi com o amigo Francisco para um parque infantil perto de casa. Começou a dançar aos 15 anos. Fundou a “In Motion Crew”. Treinavam na rua e começaram a ensinar outros miúdos. A “Crew” cresceu até que os Bombeiros Voluntários de Palmela lhes deram abrigo.
 

 
Para André nem tudo foram danças. No bom sentido. Desde pequeno que gostava de desenhar casas e aos 18 anos foi para Lisboa licenciar-se em Design de Equipamento, na Escola Superior de Belas Artes. Nessa altura descobriu Miles Davis e apaixonou-se pelo jazz. Identificou-se com o músico que, tal como ele, se sentia «criança sempre que descobre uma coisa nova.» Essa atitude tem estado latente na forma de encarar a vida. Desde o tempo em que competia entre amigos, nas chamadas battles, e nem as dores, as nódoas negras ou o corpo todo destruído o demoveram. Em 2004 o grupo soube de uma competição de breakdance em Almada. «Nós, que achávamos que éramos os únicos a fazer o renascimento do breakdance, quando descobrimos que havia toda uma comunidade ficámos histéricos». Treinaram uma coreografia para entrar na competição e, de repente, conheceram outros grupos de Almada, Lisboa e Barreiro. Com eles começou a treinar no metro da capital. É também através deles que conheceu Eduardo Leitão, hoje um dos seus melhores amigos e que acabaria por acompanhá-lo na aventura pelos EUA. «Quando vi o Eduardo treinar pensei: este rapaz tem uma metodologia muito fixe». A partir daí conversa puxa treino e entreajuda, e nunca mais se largaram. A fasquia de treino, entretanto, subira. Em 2009 participou no “UK B-Boy Championships”
 
Ficou em sexto lugar. Em meados deste mês representa, com outros bailarinos, a “Crew” de Lisboa na “Porto World Battle”. Com uma vida de treino diário e a dar aulas de breakdance, André começou a sentir descompensações musculares. De repente sentia que já não era capaz de usar o corpo em pleno e, simultaneamente, queria aumentar a capacidade de movimento(s). Coincidência ou não, viu um vídeo de um body-builder que usava uma prótese para fazer preparação física no ginásio e para treinar alguns movimentos com amigos. «Fez-me pensar nas aplicações práticas que essa ferramenta poderia ter para o meu equilíbrio, assim como para desenvolver outro tipo de movimentos». E ao partilhar o vídeo no Facebook os amigos sugeriram-lhe: «porque não um crowdfunding?». 
 

 
O projecto começou a desenhar-se e o «MC Slow J» associou-se à causa com o “Arte”, em que assume que «desde puto ouvia falar de Speedy». Realizado pela Made in Lx, este vídeo tem André como protagonista. O crowdfunding teve a duração de um mês e meio, e contou com grande apoio da comunicação social. «Inicialmente até achámos que íamos conseguir o apoio de uma grande marca, mas quem nos ajudou mesmo foram as pessoas. A energia delas, a sua vontade real para que eu fizesse isto». Na rua teve contribuições de 20,20 a 21. «As pessoas não tinham grande coisa nos bolsos, mas o que tinham davam-me».
 
Ultimamente, com a prótese, tem a sensação de shadow movement, que é sentir uma coisa que não tem. «Que estou a conseguir fazer uma flexão. Que o apoio de um lado é o apoio real que tenho do outro lado. A prótese está a mudar a minha maneira de me mover e até a percepção do meu corpo». Em fase de encantamento, já deixou de pensar que vai fazer os movimentos sempre da mesma maneira. Já não quer encontrar um centro para o corpo que tem agora, porque sabe que ele está sempre em mutação. O corpo há-de estabilizar, mas a adaptação à prótese pode demorar um a dois anos. Até lá, André vai viver feliz e motivado. «Tenho um brinquedo novo com o qual posso brincar todos os dias».
 
 

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