O rio Tejo, o mesmo que terá trazido o jovem Luís Vaz de Camões a Constância no século XVI, permanece tranquilo, indiferente às mudanças trazidas pelo terceiro milénio.
A indiferença é apenas aparente, esclarece Sérgio Silva, barqueiro de 47 anos que todos os dias faz a travessia entre margens. «O Tejo perdeu muita água nos últimos anos», comenta, «por causa das barragens, sobretudo as de Espanha». Felizmente, manteve a beleza.
Sérgio Silva faz a travessia do Tejo em Constância
Sérgio ama o rio. Aprendeu com o pai a andar de barco «era ainda um miúdo», e nunca mais deixou de navegar sobre água doce, a levar pessoas de um lado para o outro, e a pescar, outra das suas grandes paixões.
A conversa com Ana Cristina Costa, enfermeira no centro de saúde de Constância e anfitriã da visita à vila ribeirinha, decorre com a naturalidade própria de pessoas que se conhecem há muito.
Vista do rio, manhã cedo, Constância parece compor um postal, com as suas casinhas térreas brancas de varandas floridas a serpentear por ruas estreitas e pequenos largos. Ao seu redor, verde, uma imensidão de verde.
A bruma matinal sobe do Tejo e impregna a vila ribatejana de um ambiente de mistério e paz. A quietude envolve a paisagem mas não a paralisa. Ouve-se o murmurar das águas dos rios – o Tejo e o Zêzere, cujas águas desaguam em Constância. Vindo lá do alto, das árvores e do céu, ouve-se o chilrear das rolas.
«Adoro este lugar», murmura Cristina junto ao sítio onde o rio Zêzere encontra o Tejo e lhe entrega a vida das suas águas. «É um dos poucos sítios onde ainda ouvimos o silêncio e conseguimos relaxar». A enfermeira sorri, enquanto inspira o ar puro dos chorões e dos salgueiros, árvores verdíssimas que acompanham os rios.
A simplicidade da natureza e do modo de vida dos habitantes de Constância, cerca de quatro mil almas, convenceram a enfermeira de 46 anos a ficar na zona já lá vão sete.
O Borboletário de Santa Margarida é o único tropical do país
A alguns quilómetros da vila, em Santa Margarida, fica o Borboletário Tropical, onde se reproduz o clima húmido e quente dos trópicos. Este borboletário é o único no país aberto o ano inteiro. Assim que se entra, vê-se um festival de cores e movimentos suaves de dança no voo das borboletas de outras zonas do globo. A visita é uma oportunidade de conhecer o ciclo de vida destes insectos, desde que são lagartas.
O mundo chegou a Constância também através das palavras e das plantas. Muito perto da zona ribeirinha, fica a casa onde o jovem Luís de Camões terá vivido há 500 anos, expulso da corte do Rei D. João III, pelos sarilhos provocados pelo seu mau génio. «Tinha temperamento de artista», comenta o anfitrião da Casa-Memória de Camões em Constância, António Matias Coelho.
A vila soube agradecer-lhe o privilégio: em 1990, passou a ser possível percorrer a obra do escritor e acompanhar as suas viagens pelo Oriente através dos cheiros e das cores das plantas do Jardim-Horto de Camões, num lugar sobranceiro ao Zêzere.
O cravo, a rosa, o lírio, a oliveira e a laranjeira convidam a descobrir a lírica camoniana. Cada planta tem a indicação da obra onde é referida pelo escritor.
O mesmo acontece com as plantas evocadas n’"Os Lusíadas", a grande epopeia portuguesa. Pimenta, canela, sândalo e cânfora acompanham a visita pelo espaço projectado pelo arquitecto-paisagista Gonçalo Ribeiro Telles.
Ao fundo, há uma esfera armilar de 500 quilos, oferecida pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Vê-se também uma escultura de Lagoa Henriques, dos amantes na Ilha dos Amores, a levar-nos a "Os Lusíadas".
No Parque de Astronomia de Constância, simula-se a sensação de estar no espaço
Finalmente, encontra-se o universo do tempo de Camões, com todos os corpos celestes a girar em torno da Terra. A ciência viria a dar razão a Galileu, o corajoso astrónomo que ousou contestar a crença de que a Terra era o centro do universo. Esta visão, da Terra a girar em torno do Sol, pode observar-se no Centro Ciência Viva de Constância – Parque Temático de Astronomia. Mal entra a noite, começa o espectáculo nos enormes telescópios instalados no recinto, a dar conta do quão minúsculo é o ser humano. «É maravilhoso», diz Cristina.
No céu pode ver-se enxames de estrelas. Na verdade são grupos de estrelas com a mesma origem e idade que se vão afastando ao longo de milhões de anos pela gravidade.
Miguel Bento, o astrónomo, explica que o Sol está num dos braços da Via Láctea, uma galáxia em espiral com cerca de 120 mil milhões de estrelas.
De dia, outras estrelas clamam por atenção: as do Parque de Escultura Contemporânea Almourol, em Vila Nova da Barquinha, outra vila ribeirinha nas margens do Tejo.
Ao longo de sete hectares de verde que desaguam no rio encontra-se peças de artistas portugueses: Joana Vasconcelos, Alberto Carneiro, Pedro Cabrita Reis, Ângela Ferreira.
Criado por Hipólito Bettencourt e Joana Sena Rego, este museu ao ar livre obteve em 2007 o Prémio Nacional de Arquitectura Paisagista.
Ali perto fica Tancos, aldeia também ribeirinha, onde está instalado um dos maiores polígonos militares do país. No cais da aldeia, apanha-se o barco solar "Ninfa do Tejo", que leva ao Castelo de Almourol, construído em 1.171 pelo grão-mestre Gualdim Pais.
«O Castelo de Almourol é um lugar de lendas», conta a enfermeira Ana Cristina Costa
Do outro lado, no Arripiado, um furão procura abrigo. O sol inunda as águas e doura-as até à ilha de Almourol, outrora habitada pelos cavaleiros da Ordem dos Templários. Ainda hoje, a fortaleza é povoada por memórias e lendas. «Há muito misticismo ligado a Almourol. Lendas de mouras, ligações secretas», conta a enfermeira Cristina.
Uma dessas lendas dá conta de uma traição à filha de um emir muçulmano. O cavaleiro cristão por quem estava apaixonada traiu-a, abrindo as portas aos companheiros de armas. O emir, porém, preferiu atirar-se ao rio, abraçado à filha, a cair nas mãos dos inimigos cristãos.
Passado e presente coabitam em Vila Nova da Barquinha. Distribuída pelo território, a arte urbana leva-nos à descoberta das várias aldeias.
Arte de Vhils numa aldeia de Vila Nova da Barquinha
Vhils, Violante e Manuel João Vieira, o irreverente vocalista dos Ena Pá 2000, são alguns dos artistas com intervenções nas paredes do concelho. Vhils, por exemplo, escolheu a tradição de moldar o barro para representar um artesão na aldeia da Atalaia. O senhor João vê esta obra de arte todos os dias enquanto cuida das couves e das batatas na sua horta, no outro lado da estrada. Acena às visitas e continua. No terceiro milénio como sempre.
Vila Nova da Barquinha tem intervenções de arte urbana de Vhils, Violante e o Manuel João Vieira dos Ena Pá 2000