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15 abril 2019
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Pedro Loureiro e Romeu Carvalho Fotografia de Pedro Loureiro e Romeu Carvalho

Páscoa mágica

​​​​Em Castelo de Vide, os cordeiros são os primeiros a receber a bênção.

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No sábado, ainda pelo orvalho da manhã, os cordeiros apresentam-se no centro da vila para serem os primeiros a receber a bênção da Páscoa. No tempo em que havia mais pastores do que automóveis, irrompiam de todo o lado em numerosos rebanhos. As ruas tilintavam de alegria à passagem daqueles ordeiros manifestantes de fatinho de lã e gravata de campânula, sempre a gritar a mesma palavra de ordem desde a arca de Noé.
 
- Mee! Meeee! Meeeeeee!

 Foram os animais a ensinar os homens a dar ao badalo.

 À noite, muitas centenas de campânulas vão transpor as altas portadas da Igreja de Santa Maria da Devesa para a Vigília Pascal.

 Provavelmente, a matriz de Castelo de Vide é o maior templo do Alto Alentejo. Se o turista deseja fazer uma fotografia sem amputar uma torre do sino, o melhor é pôr-se a caminho da Ermida da Senhora da Penha, mesmo ali de frente para a vila. A meio da subida, quando encontrar umas torres de telecomunicações, pare o carro. No miradouro natural da Serra de São Paulo, ao lado esquerdo da estrada, Castelo de Vide revela-se inteira e íntegra.
 

 O farmacêutico André Barrigas fala com paixão de uma terra que «todos podemos sentir como nossa»
 
O retrato de família da vila é tão belo que vai guardá-lo para sempre nas memórias da sua vida. Extasiado, D. Pedro V chamou-lhe “Sintra do Alentejo”. Não obstante ser republicano há quatro gerações, o farmacêutico André Barrigas segue o rei no piropo poético à paisagem.
 
- O Paraíso tem muitas curvas. Custa chegarmos aqui, como na estrada de Sintra, mas depois ficamos apaixonados.
 
Vista do mirante, a Igreja Matriz pastoreia o casario. Ao lado, a muralha do burgo medieval lembra um pequeno cercado para os animais. O exorbitante tamanho do templo, nesta escala urbanística, é um indício resplandecente das luzes e das sombras do nosso passado colectivo.
 
- No século XVIII, os cristãos ergueram este edifício descomunal para afirmarem a religião dominante, porque os judeus tinham adquirido muita influência na vida cultural e política.
 

 Na Fonte da Vila, Carolino Tapadejo mostra a chave que conta uma história incrível, de tragédia e superação

Carolino Tapadejo traz no bolso a chave da História que temos para contar. É descendente de uma linhagem de ferreiros judeus, com marca registada em Castelo de Vide desde 1508. Começou aos 11 anos a malhar o ferro na oficina do pai, hoje transformada em museu. Chegou a presidente da Câmara Municipal e a provedor da Santa Casa da Misericórdia. Nessa época, plantou na terra e no coração o vício de investigar o passado. A preservação da memória rende hoje ao município turismo todo o ano, principalmente judaico, proveniente dos quatro cantos do mundo.
 
​- Esta chave regressou a casa cinco séculos depois!
 
É uma chave de ferro, preta e oxidada, quem sabe forjada na oficina dos Tapadejo. Foi levada a correr mundo por uma família judia de Castelo de Vide em fuga à Inquisição. Só nesta comunidade, houve 400 vítimas. A chave atravessou gerações, sempre na mão das mulheres da família. A última foi Esther Cohen, de 82 anos, que não deixou filhos.
 
Doente com cancro, antes de morrer fez questão de vir da Turquia, onde viveu, conhecer a terra mítica das suas origens. Na sinagoga, confiou a relíquia ao comovido Carolino. Foi em 2015, exactamente 500 anos depois da instauração dos tribunais do Santo Ofício.
 
- Imagine a minha emoção.
 

 A judiaria, o antigo bairro cristão e o castelo medieval são o coração de uma vila antiga, que respira História​
 
Faz sentido que o ferreiro-historiador exiba a chave para a fotografia na encantadora Fonte da Vila. As ruas do antigo bairro cristão e da judiaria convergem para este templo pagão de seis colunas e telhadinho em forma de pirâmide. A nascente de água mineral rega uma tulipa e mata a sede a duas crianças de mármore. Beba também o viandante e vai sentir nascer-lhe no coração uma súbita sensação de paz. Esse efeito terapêutico estava nos planos do farmacêutico nosso guia.
 
- Castelo de Vide não é uma terra mais bonita do que outras, mas acaba por ter mais alguma coisa… Dá-nos uma paz, uma segurança, algo mágico.
 
A dez minutos a pé do centro, o forasteiro encontra onde pernoitar sossegado e acordar numa ópera de cotovias, estorninhos, pintarroxos, rabirruivos, poupas e rãs. A observação de aves atrai à Serra de São Mamede muitos amantes da natureza.
 
André Barrigas arrola a alegria das pessoas e o seu prazer em receber como traços distintivos da terra. O patrocínio parece exagerado, mas só até à primeira visita. Em Castelo de Vide, antes de o perguntar já alguém lhe indicou o melhor caminho, as crianças encontram sempre ouvintes atentos e vigilantes, nas esplanadas o cão da família é servido por iniciativa dos proprietários daquela aguinha mineral canalizada da Serra de São Mamede.
 
- Qualquer um de nós pode sentir que esta é a nossa terra. É como eu acho que as pessoas acabam por sentir Castelo de Vide, quando aqui passam.
 
É sintomático que o farmacêutico diga “nossa” e não “sua” terra. Castelo de Vide aprendeu há muito o desafio da diferença, os horrores do ódio, o préstimo da partilha e o supremo privilégio da paz.
 
- Tlim! Tlim! Tlim!
 
 

 
Os cordeiros começam a ficar nervosos de se verem rodeados de tanta gente. Pouco depois das dez horas de sábado, a cruz de Cristo crucificado faz a sua aparição no adro da Igreja Matriz. De paramento roxo, o cónego Tarcísio pega num megafone azul celestial e endereça palavras de paz aos fiéis de todos os credos.
 
- Enaltecemos os valores do respeito e da diferença entre as pessoas e os povos na construção da paz. Recordamos o espírito de tolerância e de boa convivência que se estabeleceu entre cristãos e judeus de Castelo de Vide. 
 
A leitura bíblica escolhida para a cerimónia recorda o sacrifício dos cordeiros que permitiu ao povo judeu fugir da escravatura no Egipto, rumo à Terra Prometida. A carne assada dos animais deu forças aos eleitos para a viagem. O sangue, pintado nas portas dos crentes, deixou-os a salvo da fúria divina.
 
- Naquela mesma noite, passarei pelo Egipto e matarei todos os primogénitos, tanto dos homens como dos animais. O sangue será um sinal para indicar as casas em que vocês estiverem; quando eu vir o sangue, passarei adiante.
 
Na Páscoa, enquanto os católicos celebram a paixão e a ressurreição de Cristo, a comunidade judaica recorda o êxodo do Egipto. A bênção aos cordeiros mostra ao mundo como as duas fés podem conviver num único ritual, ainda para mais com raízes pagãs.
 
- Abençoai, Senhor, estes animais que pusestes ao nosso serviço. Abençoai todas as pessoas que deles se servirem. Fazei-nos compreender que Jesus Cristo é o verdadeiro Cordeiro que tira o pecado do mundo.
 
À noite, finalmente é a vez dos seres humanos experimentarem o êxtase da paz entre credos e culturas. Afinal, a Igreja Matriz é acanhada para a Vigília Pascal. Está cheia como um ovo e ainda fica gente de fora. Com o aproximar da hora, o nervoso miudinho sobe até à abóboda. Os adultos, com os seus brinquedos mal escondidos, tornam a ser crianças. Por maior devoção, longa se torna a espera pelo grande momento, em que o padre Melícias profere as palavras mágicas que dão início à festa.
 
- Aleluia! Aleluia!
 

 Na noite da chocalhada, a igreja enche-se e os adultos voltam a ser crianças
 
Milhares de fiéis respondem de campânulas no ar, algumas do tamanho de sinos, e desatam a badalar dentro da igreja. Contado, nenhum cristão de fora acredita, mas a “chocalhada” existe e é uma festa de arromba.
 
A seguir à missa, o povo corre pelas ruas atrás da banda de música. Trombones e chocalhos festejam ao desafio a ressurreição de Cristo, a obediência do Mar Vermelho ao cajado de Moisés, a felicidade de estarmos juntos e vivos. De campainhas eclesiásticas na mão, os padres e diáconos acompanham a correria e dão solenidade ao desfile.
 

 No fim da missa, povo, padres e banda de música correm em procissão a chocalhar pelas ruas

A Igreja abraça sem complexos a festa popular e o lado pagão da Páscoa. Quem dera aos cortejos de Carnaval portugueses espalharem tanta alegria como esta procissão nocturna. André Barrigas convida toda a gente a pegar no badalo da Páscoa pelo menos uma vez na vida.
- É um sentimento mágico de pertença universal.
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