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1 abril 2017
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de António Araújo Fotografia de António Araújo

Oásis do mar

​​​​​​​​​​​​​​A ilha Terceira é um poderoso antidepressivo.

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Andavam as naus de Camões «cortando a larga via do mar» e a fronteira entre realidade e fantasia quando a encantadora Vénus, deusa do amor e da beleza, soprou às velas ventos alísios, daqueles que ainda hoje fazem aviões aterrar de emergência no Aeroporto das Lages. Uma anástrofe, recurso estilístico de antecipar as palavras-chave, revelou ao longe terra à vista. 

De longe a Ilha viram, fresca e bela, 
Que Vénus pelas ondas lha levava 
(Bem como o vento leva branca vela) 
 
A ilha Terceira seduz à distância e insinua-se ao perto como uma mulher fatal. Angra convida, com o seu decote na costa em forma de concha, desenhado com um G nalguns mapas antigos. Séculos de marinheiros ansiosos por terra e sedentos de carne abordaram aquela enseada de águas profundas.
 

 
Onde a costa fazia ua enseada 
Curva e quieta, cuja branca areia 
Pintou de ruivas conchas Citereia.

Poderá a ilha Terceira dos Açores ter inspirado a ilha dos Amores d’Os Lusíadas? Teófilo Braga, escritor e líder político da Primeira República, deixou essa tese escrita. Como ele nasceu em São Miguel, a ilha rival, a tese ou é insuspeita ou um presente envenenado. Que espécie de fundição pode haver entre as obras de um poeta e de um vulcão? Posta cruamente a questão, a resposta está nos olhos de cada um, ou talvez no coração. Por exemplo, do historiador Maduro Dias. Quando regressa a casa de barco, até vê os versos aparecerem-lhe à frente. 

 Três fermosos outeiros 
se mostravam, 
Erguidos com soberba graciosa, 
Que de gramíneo esmalte se adornavam, 
Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa 

O farmacêutico Bruno Machado também nos convidou para o mar, a avistar golfinhos brincalhões ou baleias azuis de 30 metros e 170 toneladas. As águas dos Açores são um jardim zoológico de grandes cetáceos, com 24 espécies residentes ou em cruzeiro migratório. É preciso alguma sorte e muita atenção. Os turistas não tiram os olhos da água. Ao aparecimento de um cachalote – há muitos, porque passou a ser proibido caçá-los há 30 anos – erguem em coro cabeças e telemóveis. A nós, a terra chama-nos. A península do Monte Brasil, à frente de Angra, exibe três colinas verdes e harmoniosas. Parecem mesmo desenhadas pelo verso de Camões. Enquanto o barco regressa à baía, envolvido numa nuvem de praticantes de remo e windsurf, a conversa entra n’Os Lusíadas. O nosso farmacêutico-guia tem um remédio muito prático para o dilema literário. 
 

 
- Venham à ilha para namorar. 
 
Bruno Machado sugere uma noite no mar a casais apaixonados. Há barcos especializados nessas luas-de-mel ao luar. O aconselhamento farmacêutico completo compreende romance, prática desportiva, caminhadas por trilhos, um passeio de jipe ao cume da Serra de Santa Bárbara, peixe fresco na mesa, cultura e muito divertimento. A Terceira é provavelmente o território português com maior densidade de músicos, marchantes e actores populares. Há uma quaresma para a Páscoa e outra para… o Carnaval. Nas quatro quintas-feiras que o antecedem, os bailinhos enchem os salões recreativos.
 
Grupos amadores, mas muito bem ensaiados, combinam teatro, escárnio em rimas, danças e música com instrumentos de sopro e de cordas. Este ano, exibiram-se 62. E a Páscoa, na realidade, prolonga-se por oito domingos, com as coroações e comezainas colectivas das festas do Espírito Santo. De 1 de Maio a 31 de Outubro, há touradas à corda. Como no Minho, cada uma das trinta freguesias tem a sua romaria. O ponto alto são as Sanjoaninas, em Angra do Heroísmo. Imagine um mar de gente, como no São João do Porto, dezenas de marchas na rua, como em Lisboa no Santo António, só que doze noites e doze dias sem parar. Este ano, o São João de Angra do Heroísmo vai durar de 22 de Junho a 2 de Julho. De 4 a 13 de Agosto, responde a cidade da Praia da Vitória. Em Angra há sardinhas à borla para toda a gente, nas Festas da Praia a maior feira de gastronomia. De um lado e do outro, turistas e emigrantes têm direito a doses generosas de vinho e das tradições da ilha. Serão os Açores oito ilhas e um parque de diversões? 
 
- Eles, lá em São Miguel, não sabem 
o trabalho que dá fazer a festa. 
 
Na Terceira, as vacas desfilam na estrada e os seres humanos sobem ao palco ou sentam-se à mesa. A banda sonora é garantida pelos ensaios das 24 bandas filarmónicas em actividade. Em São Mateus, o Restaurante Beira Mar é um festival permanente de lapas, cracas, mariscos e peixes fresquíssimos. Quem fica à espera de mesa vai ali ao lado, ao pequeno museu do porto, ver barcos, arpões, fotografias e outras memórias impressionantes do tempo dos baleeiros. Sem sair de Angra, Bruno Machado recomenda a tradicional Adega Lusitânia, o moderno Q.B. e a requintada Tasca das Tias. O Ti Choa, na Serreta, destaca-se na gastronomia regional e na alegria de receber pessoas. As doses são tão boas – e tão fartas – que se recomenda a estômagos continentais a repartição das provas por várias visitas. Por alguma razão a casa oferece Rennie e Kompensan, licor de amora e aguardente caseira. Mistura-as a gosto o cliente. A proprietária, Denise, é uma das melhores guias-turísticas da ilha. 
 

 
- Deus nos livre de irem embora sem provar a alcatra. 
 
Este saboroso prato de carne é confeccionado em potes de barro cobertos com folha de inhame. Fica a cozinhar de um dia para o outro nas dispensas comunitárias dos Impérios, coloridos altares ao Divino Espírito Santo que polvilham a ilha. É distribuída a todos nas festas em que homens, mulheres e crianças abençoados encabeçam alegres procissões de coroa na cabeça, evocando a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Vinho verdelho seco local, folha de louro da Europa, pimenta da Jamaica, cravinho e pimenta preta da Índia. A paz no mundo é para comer.
 
Este prato é o resultado da condição histórica da ilha Terceira, no centro das rotas de navegação dos impérios português e espanhol. Cada um deixou a sua fortificação à entrada de Angra, como o império americano a Base das Lages. O historiador Maduro Dias explica que a ilha Terceira sempre foi «a estação de serviço» dos homens do mar. Até os bailinhos de carnaval, como refere Luiz Fagundes Duarte, têm flagrantes semelhanças com o teatro que se representava a bordo das naus.
 
Dos Descobrimentos até hoje, Vénus perdeu umas noventa embarcações para os braços de morte de Plutão. Um ‘cemitério’ de 44 âncoras atrai agora os amantes do mergulho e da pesca desportiva. Na ilha Terceira, tudo acaba em festa.


Há fiesta na Salga

A ilha Terceira foi conspirada por vulcões há mais de três milhões de anos. O número exacto de elementos desse bando incendiário ainda está sob inquérito geológico. Do que já foi possível apurar, a Serra de Santa Bárbara, perfurando as nuvens 1.021 metros acima do nível do mar, encabeça a relação de crimes. Na rota das caravelas ficou ainda um rasto com 29 quilómetros de comprido por 18 de largura de terra prometida – e fértil. Não espanta que Jácome de Bruges, flamengo imigrado, com mulher portuguesa e muito leal à coroa, a tenha pedido ao Infante D. Henrique.

Que ele a povoe da gente que lhe aprouver, desde que seja de fé católica.

Em 1451 chegaram os primeiros dois navios com fidalgos e gentios, vacas, porcos, cabras e ovelhas. Ainda hoje, 60 por cento da ilha é área agrícola. As vinhas agarram-se à pedra ainda quente e dão vinho verdelho, as vacas ao pasto verde até sair leite. O escritor Raul Brandão bebeu-o sem parar, ao ponto de a ilha lhe parecer uma vaca.

Dão leite os montes e vales.

O perigo chegaria à ilha 130 anos depois, com a cruz de cristo pintada nas velas, num acto triste de traição à fé católica do Infante. No dia 5 de Julho de 1581, ao raiar do dia, apareceram à vista de Angra sete grandes naus com mil soldados espanhóis a bordo. Vinha uma oitava embarcação, mais pequena e ligeira, a desempenhar duas missões: garantir refeições de peixe fresco e jogar com o inimigo um cruzamento de diplomacia e espionagem. À época, estas barcas pesqueiras eram significativamente chamadas de mexeriqueiras. Este ponto é importante.

O capitão da armada, Pedro de Valdez, tinha ordens para trocar cartas, negociar favores e aguardar reforços.  Mas  a beleza fatal daquela terra, tão bem trabalhada por vulcões e portugueses, despertou-lhe a cobiça e precipitou o desembarque, no dia 25 de Julho.

Foi no lugar da Salga, em Porto Judeu. A mulher mais bela da ilha, de seu nome Brianda Pereira, e dois velhos, Gonçalo Anes Machado e António Gonçalves, receberam os soldados nas pontas afiadas de forquilhas e alfaias agrícolas. Nessa manhã, quente e bruta, entraram para a História como símbolos da resistência do povo insular. Mas a Batalha da Salga só ficou decidida ao início da tarde, quando os portugueses largaram gado bravo para cima dos invasores. Morreram os castelhanos esmagados, perfurados e afogados pelo peso das armaduras durante a fuga. Celebrada a vitória com banquete e missa, Ciprião de Figueiredo, governador da ilha, escreveu uma carta ao rei espanhol.

Antes morrer livres que em paz sujeitos.

Estava inventada a divisa dos Açores. Já Lisboa e as praias do Algarve obedeciam ao domínio filipino e era o Prior do Crato quem reinava nalgumas ilhas do arquipélago. D. António, apesar de ser facto esquecido em muitas escolas, cunhou moeda e foi rei de Portugal na ilha Terceira. O povo, bravo e insubmisso como o gado aliado de guerra, prolongou a independência durante três anos heróicos. Só em 1583, na Baía das Mós, uma armada espanhola de doze mil soldados, distribuídos por dois galeões, 12 galeras e 31 naus, se impôs pela força aos irredutíveis terceirenses. O touro subiu merecidamente a símbolo de Espanha. Na ilha, é antes o convidado especial de muitas festas de rua.

Um terceirense faz gala de ser o primeiro, mas também o último a rir. Nesse ínterim, faz a festa.​

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