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16 novembro 2017
Texto de Irina Fernandes Texto de Irina Fernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Rernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Rernandes

O telefone dos aflitos

​​​​​​​​​A equipa da farmácia sabe o nome, a família e a morada de toda a gente.

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Farmácia Rainha - Carrazeda de Ansiães

​​​​​Faltam menos de 15 minutos para as sete da tarde. O Davide, de 11 anos, entra na farmácia de expressão fechada, pela mão do pai. Está apreensivo. A paixão pelo futebol valeu-lhe uma lesão no pé direito. «Ele joga à bola e magoou-se. Vim aqui à farmácia buscar uma ligadura e uma pomada», conta Adelino Barata, 53 anos, agricultor.

Isabel da Luz, directora-técnica, sai do balcão e curva-se diante de Davide. Explica-lhe como deve usar a meia elástica. «Lembra-te, não podes dormir com a meia! De manhã e à noite, aplicas a pomada, mas tiras a meia, OK?».

Davide já esboça outra vez um sorriso. Afinal, até vai poder ir ao treino marcado para esta tarde. «Como já tenho a meia, vou poder treinar. Eu jogo como lateral direito», conta o miúdo, orgulhoso. Revela logo que o seu clube é o Futebol Clube do Porto. O jogador de eleição é «o Cristiano Ronaldo, claro!».

Isabel da Luz, natural e residente em Mirandela, tranca a porta da farmácia. O serviço do dia está, no entanto, longe de findar. Esta semana a Farmácia Rainha está de disponibilidade. Semana sim, semana não, assegura o atendimento no período nocturno, entre as 19h e as 9h do dia seguinte, em alternância com a Farmácia Veiga, também localizada no centro de Carrazeda de Ansiães.

O concelho tem 6.300 habitantes, dispersos por 14 freguesias e 279 quilómetros quadrados. A população é envelhecida e a escolaridade baixa. O isolamento – que em Lisboa é apenas mais um conceito – aqui deambula por cada rua da vila. Define os rostos e as histórias de vida de quem resiste aqui.

O centro de saúde fecha portas às 22 horas. A partir daí, a farmácia e os bombeiros são o apoio das populações. Durante a noite e a madrugada, os técnicos e farmacêuticos fazem muitas vezes «a diferença» em situações de aflição. Cumpre-se pequenos milagres no dia-a-dia. «Às vezes, porque ajudamos a abrir um blister somos deuses», solta, emocionada, Isabel Luz. «Há muitos idosos que têm dificuldade nestes actos simples», explica. Para além da iliteracia, a idade traz com ela doenças que diminuem muito a autonomia dos utentes. «As artroses não os deixam fazer o que precisam.

Muitos deles deixam de tomar a medicação. Somos nós que fazemos isso por eles», conta ainda a farmacêutica. Muitos transmontanos vão à farmácia não só para aviar, mas também para tomar os medicamentos. «Os utentes já sabem que têm aqui sempre uma mão amiga», diz Hugo Lopes, 35 anos, técnico de farmácia. Hoje é ele que está de escala para passar a noite de disponibilidade, mas a função roda por toda a equipa.

Antes de sair, vasculha os bolsos da bata em busca do telemóvel. Não o pessoal, mas o de serviço. A Farmácia Rainha dispõe de um número de atendimento – 916 245 245 – para onde os utentes ligam nas noites em que fica de disponibilidade permanente. A verdade é que de madrugada há muito pouco serviço. Por vezes, nasce o dia e chegam as nove horas sem uma única chamada. «A pessoa que se vê numa situação de urgência vai para Mirandela, Vila Real ou Bragança. E o que acontece é que o utente levanta logo a medicação no sítio onde está», explica o técnico de serviço.

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Toda a equipa garante o serviço de urgência durante sete noites, semana sim, semana não

​21h44. O telefone toca. Hugo atende. Do outro lado, uma voz aflita. Hugo sai de casa em direcção ao local de trabalho que deixara nem há três horas. O percurso é rápido, porque ele mora perto da farmácia – «três minutos de carro ou cinco a andar a pé». Na porta estão um homem, uma mulher de receita na mão e uma criança.

«O menino não está a comer nada há já dois dias, não tem apetite e por isso é que o levámos ao médico», conta Nafissa Mzamova, 40 anos, natural do Cazaquistão. O doente é seu sobrinho, Makhama Jon Raushanbekov, de cinco anos. Hugo Lopes reconhece a criança. Tinha estado à tarde na farmácia com a mãe. «Fui eu que disse à sua cunhada que era melhor levá-lo ao médico», conta a Nafissa, enquanto verifica a receita médica ao computador.

Com a medicação já nas mãos, o profissional explica como deve ser feita a toma a Nafissa, a única na família que já domina a língua portuguesa. «Faça isto quatro vezes por dia. Primeiro, põe metade de um lado da boca e depois a outra metade do outro. Evitar bebidas com gás, limão, laranja… nada disso. Está bem?».

Emigrada há 15 anos na vila, Nafissa mostra-se grata e satisfeita com o rápido acesso à medicação. «É bom podermos levar já para casa estas gotas que o médico passou. Assim, talvez amanhã ele já tenha apetite para comer». Valoriza o serviço nocturno, como toda a gente. «Uma pessoa assim vai ao médico e não tem de esperar pelo outro dia para começar a tratar-se».

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Uma criança de 5 anos, de uma família de emigrantes, perdeu o apetite. A farmácia abriu portas à noite para resolver o problema

Habituado a cumprir serviço nocturno há sete anos, Hugo é mais do que técnico de farmácia. É um filho da terra. Dono de uma memória invejável, conhece como ninguém os rostos e as aflições de cada habitante de Carrazeda de Ansiães. «O Hugo sabe o nome completo de toda a gente. E a morada, o número de telefone e quem é filho de quem», elogia, entusiasmada, Isabel da Luz. Para ele, saber tudo de cor e salteado é normal. «Fui criado aqui. O meu pai é taxista e eu acabo por saber onde é que as pessoas moram, onde vivem os primos e por aí fora». Essa informação toda agiliza o serviço. «Fico atento a quem entra na farmácia. Se vier algum vizinho da pessoa que encomendou um medicamento, peço-lhe para lho entregar». A memória de Hugo Lopes é um benefício real para os utentes.

Tão cedo, o técnico de farmácia não esquecerá uma noite, em plena quadra natalícia, em que foi chamado a ajudar uma criança com queimaduras no corpo. «Uma senhora telefonou-nos aflita pois o filho, com seis anos, tinha caído à lareira. Queimou-se num braço e numa mão, e o centro de saúde estava encerrado. Dei toda a ajuda que pude: limpei a ferida e apliquei uma pomada para queimaduras. Disse-lhe que se a situação piorasse deveria ir à urgência a Vila Real».

No dia a seguir, Hugo recebeu uma visita inesperada na farmácia. «A senhora apareceu-me aqui de manhã, emocionada, porque o filho já estava a melhorar. E trouxe-me uma prenda». Já lá vão uns anos. A família mudou-se para longe. Mas este Verão fez questão de regressar à farmácia para agradecer novamente aquele Natal. «Até hoje, o menino sabe o meu nome. Enfim, são histórias que nos marcam».​​
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