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14 setembro 2020
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O surfista vigilante

​​​​​​Reagir aos primeiros sinais da doença salvou-lhe a vida.
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A história de Miguel Aires é uma daquelas que nos despertam para o verdadeiro valor da vida, de cada segundo dela. Recuemos a 2007. Ele tinha tudo: a juventude dos 28 anos ajudada pela prática de desporto, um bom emprego em consultoria industrial, uma filha de apenas três meses.

O sinal de alerta foi a dormência no lado direito do rosto, acompanhada de tremura no olho. Tivesse ele ignorado os sinais e, provavelmente, não estaria cá para contar a história. Perante o incómodo, decidiu consultar um neurologista.

Os exames pedidos pelo médico revelaram a ameaça alojada no cérebro: uma malformação arteriovenosa (MAV), ligação anormal entre artérias e veias através de um emaranhado de vasos, no tronco cerebral. «Era um caso muito difícil. O neurocirurgião deu-me logo uma probabilidade de morte de 90 por cento», conta.

Se por milagre sobrevivesse, ficar numa cadeira de rodas era o cenário mais provável. «Foi um choque, a minha filha era um bebé pequenito. Apresentaram-me uma situação muito negra».

Desenvolvida ao longo da vida, a malformação congénita só se manifestara pela sua dimensão. O mais comum nestas situações é «rebentar um aneurisma, e acabou-se». O seu caso era diferente: Não era só um aneurisma, mas vários, num emaranhado de veias. E estavam num sítio muito complicado [do cérebro]. Perante um cenário tão desanimador, Miguel decidiu lutar: «Tinha de resolver a situação. Não ia viver com uma bomba-relógio dentro da cabeça», explica.
 
Agarrou-se a uma centelha de esperança: o neurocirurgião que o acompanhava aconselhou-o a apresentar o seu caso a uma equipa médica brasileira, com mais experiência em casos tão complicados. Miguel seguiu o conselho. Não iria deixar a filha órfã: «O meu médico em Portugal contactou esse neurocirurgião brasileiro e apresentou-lhe o meu caso. Aceitou tratar-me».

Seguiram-se tempos extremamente duros. «Não há momentos fáceis nestas situações», sublinha. A começar pela despedida das pessoas de quem gostava. «Antes de ir, tive de me despedir dos meus familiares todos em Portugal. Foi como fazerem o funeral comigo vivo». O mais duro foi dizer adeus à filha. Simultaneamente, foi a bebé de três meses a sua grande motivação para a luta de vida ou morte que enfrentaria. Ao longo de todo o processo, a fotografia dela na mesa de cabeceira do hospital renovava-lhe as forças para continuar, uma e outra vez.


Antes de partir para o Brasil, onde foi operado, despediu-se de toda a família. «Foi como fazerem-me o funeral comigo vivo», recorda

No Brasil, o médico anunciou a sua decisão: apesar de o caso ser muito grave, pretendia operá-lo. A juventude de Miguel e o facto de praticar desporto favoreciam o sucesso da intervenção e a posterior recuperação. Mas tudo dependeria dele. Em apenas três meses, passou por três operações ao cérebro. A primeira, realizada por cateterismo, técnica cirúrgica menos invasiva, durou cinco horas. A segunda, realizada através do mesmo procedimento apenas um mês depois, outras cinco. O objectivo era embolizar a malformação arteriovenosa. Essa segunda operação deixou a primeira sequela irreversível: Miguel perdeu a audição no ouvido direito.

Mesmo assim vê o lado positivo: «Correu tudo muito bem». Perguntou ao médico se podia ficar por ali. A resposta foi negativa: era necessário retirar as artérias e veias inutilizadas.
 
A terceira operação seria a mais longa e de mais difícil recuperação, avisou-o o cirurgião. «Preveniu-me logo que iria ser como se passasse um camião por cima de mim». Assim foi. Dezoito horas de cirurgia depois, repetiram-lhe a boa nova: «Correu muito bem».

Ele, porém, estava um caos. «Fiquei mesmo em muito mau estado em termos físicos». A malformação não deixara danos a nível cognitivo, mas não foi tão branda a nível motor. «Foi mais afectado o lado direito. O médico disse: “Agora vai começar uma caminhada de recuperação”».

O regresso a Portugal significou uma espécie de renascimento. «Senti que tinha de puxar por mim e fazer o que fosse possível para criar a minha filha». Lembra-se ainda com assombro do momento em que voltou a ver a bebé no berço. 


O bodyboard é a sua paixão desde míudo

A caminhada anunciada passou pela realização de dois anos de fisioterapia «só para voltar a andar normalmente». Além disso, a perda da motricidade fina implicou que Miguel tivesse de aprender a escrever com a mão esquerda. Ajudou-o «muito» a prática de desporto, especialmente a sua grande paixão, o bodyboard.


Quase todos os dias Miguel entra no mar da Caparica para umas horas de bodyboard

Alguns anos depois de vencer a morte, recebeu nova boa notícia: ia ser pai de gémeos. «Uma prenda pelo momento duro que atravessei», acredita Miguel. Que implica, diz com tranquilidade, «um grande desafio». Tem vivido a paternidade com segurança e entusiasmo, mesmo com as dificuldades acrescidas. Superou-se: «Tive de me adaptar a não ter um ouvido, a escrever com a mão esquerda, a imensas coisas».

 



Entretanto contou aos filhos, a mais velha com 13 anos e os gémeos com oito, o problema de saúde grave que viveu. Divorciado entretanto, dedica-lhes o máximo de tempo possível. «Fiz sempre questão de ficar com eles. E apesar do problema que tive, acompanhei-os nas coisas normais das crianças: deixar a fralda, levar a horas à escola, festas de anos, transmitir o que acho correcto e que deve fazer parte do crescimento de uma pessoa». Os valores aprendidos com os pais.


​13 anos passaram e agora, curado, diz que está em melhor forma física do que antes da doença se manifestar

À distância de 13 anos e curado, Miguel garante: «Uma situação destas leva as pessoas a pensar de outra maneira, a valorizar as coisas boas e bonitas da vida, e a desvalorizar os problemas». A ele, tornou-o também mais agradecido: «Consegui superar o patamar onde estava antes, a nível físico. Não recuperei a audição e a motricidade fina, mas fiquei em melhor condição do que antes de ser operado».

O segredo para seguir em frente? Seleccionar aquilo em que despendemos tempo e energia. «Se focarmos a nossa energia em construir coisas positivas, obtemos resultados rapidamente».
 

Miguel tem mais do que alguma vez sonhou: um emprego estável, os filhos e uma nova relação 

Aos 41 anos, Miguel tem tudo: um emprego em mediação imobiliária que o preenche e lhe permite ter tempo livre, três filhos que adora e vê crescer, uma relação que o faz feliz, o desporto que o apa​ixona. E a consciência de que a vida é uma dádiva.​

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