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12 agosto 2016
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Céu Guarda Fotografia de Céu Guarda

O rapaz que perdeu a cara

​​​​​​​​​​​​​Quando Michael caiu, a sua face descolou-se do crânio. F​oi necessário refazer o puzzle, a partir dos seus dentes. Peça por peça.​​

À primeira vista, Michael Camelo é apenas um rapaz normal de 28 anos. Alto, de feição estreita e alegre, é uma daquelas pessoas a quem a vida parece ter abençoado com uma leveza invulgar. À primeira vista.

Olhando para ele, é difícil acreditar que passaram pouco mais de quatro meses desde aquele dia. A data é um dos poucos pormenores que não esqueceu: 15 de Março de 2016. Tinha voltado do ginásio havia pouco tempo: passara três horas seguidas a treinar. Esqueceu-se de comer. Com o estômago vazio, começou a sentir-se mal.

Lembra-se da sensação de «sentir calor». Saiu da casa de uns amigos com quem estivera no final de tarde no Baleal (Peniche), para a rua, «para apanhar um bocado de ar».

Desmaiou. A próxima coisa que recorda é de acordar com o rosto ensanguentado,  levantar-se e pedir ajuda aos amigos. Uma quebra de tensão provocara a queda, desamparada. O rosto foi desfeito pelo alcatrão. Os amigos pensaram que «tinha sido atropelado».

O próprio não se lembra bem do seu aspecto, tem a ideia de que «não estava assim tão desfigurado». «Estava muito desfigurado», corrige-o o cirurgião plástico Tiago Toscano, do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Ambos riem. 

Michael não tem ideia de quanto tempo passou desde que o levaram ao hospital até voltar a si. «Estava muito inchado». Seria operado para a reconstrução facial um dia depois. Tiago Toscano explica: «Nestas situações de traumatismo facial, é sempre necessário fazer estudos e exames de outras especialidades para excluir problemas mais emergentes: traumatismos cranianos, lesões da coluna cervical, dificuldade em respirar…»

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Excluídos outros problemas, Michael esteve no bloco operatório durante oito horas. A chamada «cirurgia major». Enquanto dormia, Tiago Toscano e a sua equipa tiveram de «reconstruir o puzzle como estava antes» e «chegar às áreas do esqueleto que estavam fora do sítio, colocá-las e mantê-las no sítio – normalmente, requer o uso de placas de titânio e parafusos. Temos de fazer isso de modo a deixar cicatrizes o mais disfarçadas possível esteticamente».

No caso de Michael, os estragos eram tão extensos que foi necessário intervir naquilo a que os cirurgiões plásticos chamam de «os três andares da face». «O tipo de fractura que ele teve foi a face ter-se separado do crânio». Num caso destes – continua o médico – é uma prioridade reestabelecer a oclusão dentária. «Um dos poucos guias que temos para sucessivamente construir o puzzle são os dentes. É como uma gincana em que temos de ir etapa por etapa, encontrando pistas para seguir para a etapa seguinte. É assim que funciona a reconstrução do esqueleto facial».

Esteve quatro dias sedado. Michael lembra-se do dia em que se olhou ao espelho no hospital. «Foi assustador, tinha o cabelo rapado, nunca o tinha rapado». Mas sabia que tinha de ter força. «O meu irmão foi operado à cabeça, rebentou-lhe uma veia quando tinha sete anos e eu sabia que tinha de lutar, que dependia da minha vontade».

Devido à instabilidade, no seu caso foi necessário manter a oclusão dentária durante três semanas. E foi, sobretudo, neste ponto do seu tratamento que o jovem revelou de que material é feito. A sua força de vontade, a forma como valoriza a vida, como o próprio diz.

Tiago Toscano não suaviza a verdade. «A primeira oportunidade é a melhor». Michael agarrou-a com tudo o que tinha: durante três semanas, teve de manter a boca fechada com fios de aço. Foi alimentado com dieta líquida por palhinha durante todo esse período. «É muito duro», insiste o médico. Michael tenta «esquecer essa parte».

A questão é o doente perceber «que faz parte da equipa e do tratamento». «Ele percebeu», diz o médico. «A situação tem algum grau de complexidade e a colaboração do doente é parte activa da resolução do problema». «Se a pessoa não tem resistência para ultrapassar aqueles primeiros tempos, é complicado. Pode ser irreversível em termos de ganhos funcionais».

Michael diz: «Sabia que tinha de aguentar». Acreditou sempre que «ia correr tudo bem».

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Hoje, está praticamente recuperado. Ainda tem algum inchaço sob os olhos, indica o médico, mas apenas é perceptível para quem sabe o que aconteceu. Daquele dia traumático não carrega memórias de dor. «Acho que não me doía muito, não senti nada que não pudesse aguentar», diz. Tiago Toscano explica que é a chamada «amnésia defensiva», semelhante à das mulheres após o parto. O que aconteceu a Michael foi a chamada «fractura de alta energia, que as pessoas têm quando sofrem choques frontais em acidentes de viação». O médico diz a Michael: «Tu próprio nem sabes bem o que é que te aconteceu». Tiago Toscano acredita que Michael estaria em movimento quando caiu. E «de certeza, teve muitas dores».

As cicatrizes que ainda tem estão ocultas. Os médicos vão «por dentro da boca e fazem uma incisão, pela cabeça, de orelha a orelha». O que não se vê são as «placas que estão a unir a testa à face». É uma espécie de máscara. O médico comenta, pensativo: «É muito engraçado, é muito anatómico, vê-se muito bem como somos».

O jovem teve ainda outra lesão no plexo braquial, que tem os nervos que saem da coluna e dão mobilidade aos membros superiores. «Michael desvaloriza porque correu bem. Foi uma lesão transitória», sublinha o médico. Está agora a fazer fisioterapia uma vez por semana para recuperar totalmente a mobilidade no braço direito.

No resto, sente que nada mudou. «Faço ginásio como antes. Tudo para esquecer o que aconteceu. Quero seguir em frente.» O apoio da família foi fundamental, garante. «Nunca estive sozinho, somos muito unidos».

Continua a trabalhar em restauração, vai ao ginásio, à praia. Pratica surf e longboard, «é mais suave». «Fazia bodyboard, mas é demasiado agressivo para a face. Estou a gostar do longboard».

Olhando para o seu irmão gémeo, percebe que está idêntico. É apenas um rapaz normal de 28 anos. À primeira vista. Mas Michael é muito mais. 

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