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10 fevereiro 2020
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O inventor do tempo

​​​​​Os médicos deram-lhe três meses de vida. Transformou-os em 30 anos.

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Miguel transformou três meses em 30 anos. De olhos azuis, um sorriso sempre aberto, é um homem de porte alegre, que transmite confiança.  O importante é aproveitar cada momento e ver sempre o «copo cheio», garante.

Teve uma infância feliz, forjada num «berço de oiro», para Miguel sinónimo de família muito unida. Cresceu na Madorna, perto da Parede (concelho de Cascais). Brincava na rua com os amigos e aconchegava-se nos desvelos dos pais e no companheirismo dos irmãos mais novos, Pedro e Carla.

A mudança aconteceu na adolescência, com 16 anos: um cansaço constante, acompanhado de uma tosse persistente. A mãe "galinha" levou-o ao médico mas não descobriam a origem. Sucederam-se os exames, passou um ano e não havia diagnóstico.

No liceu, para matricular-se exigiam uma microrradiografia. O radiologista detectou então qualquer coisa estranha e encaminhou-o para o médico. Entre consultas de pneumologia e cardiologia no Hospital Pulido Valente, em Lisboa, Miguel encontrou uma cirurgiã torácica. Teresa Godinho salvou-lhe a vida, mesmo sem ele ter consciência do milagre na altura. 
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Ao final do dia, e após ver os exames, a médica decidiu interná-lo. Avisou os pais da gravidade: o filho tinha um tumor e não havia tempo a perder. Mais exames, muitos. Era tempo de decidir a estratégia. 
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Miguel é um homem cheio de confiança na vida, depois de ultrapassar os três meses  de esperança de vida que lhe deram

Os pais de Miguel tiveram de voltar a casa sem o filho mais velho e explicar aos mais novos o motivo de o irmão ficar no hospital. Só sabiam que era grave.

O veredicto não era animador. Tinha um teratoma gigante no mediastino, um cancro enorme a envolver-lhe órgãos vitais como o coração. A esperança de vida limitava-se a três meses. Nessa altura, com o cancro a ocupar-lhe toda a zona torácica, não sobreviveria a uma operação. 

Miguel acabou por ser transferido para um hospital particular. Não tinha tempo para o tempo das listas de espera dos hospitais públicos.  A estratégia foi concertada entre equipas: a de Teresa Godinho e a de Joaquim Gouveia​, do Hospital CUF Infante Santo, em Lisboa.

Durante 18 meses, o jovem fez «excursões em família» para os tratamentos de quimioterapia. Miguel insiste que «os verdadeiros heróis» foram os pais e os irmãos, que o acompanharam sempre. 


Rosarinho, funcionária da Escola Fernando Lopes-Graça, tornou-se uma segunda mãe para Miguel

Funcionário da Direcção-Geral da Educação, o pai conseguiu tirar licença para ir com o filho a todos os tratamentos. O resto do tempo, Miguel passava-o no então Liceu da Madorna, na Parede, hoje Escola Secundária Fernando Lopes Graça. «A escola era o sítio onde me sentia mais feliz», recorda. Frequentar as aulas era «esquecer tudo o resto», ter uma vida normal. O aspecto ajudou a manter um ar de normalidade: o cabelo tornou-se mais fino mas nunca chegou a cair. 

O ambiente escolar era especialmente amigável entre alunos, professores e auxiliares. Isso nota-se ainda hoje, quando Miguel encontra Rosarinho, uma auxiliar a quem chama de segunda mãe, e a abraça demoradamente. «Não consigo traduzir por palavras a felicidade e o prazer de  estar aqui». A escola era uma espécie de porto seguro, onde nem a doença entrava. 

Apenas Pedro, o seu melhor amigo, sabia a verdade, por conta de uma tia a trabalhar no laboratório do Hospital Pulido Valente. Mas nunca lhe disse uma palavra sobre o assunto. Como fazem os verdadeiros amigos, limitou-se a apoiá-lo. 

Chegado o momento da operação, a 17 de Janeiro, quando lhe retiraram do peito o cancro tinha ainda o tamanho de dois punhos.

O resto é história: uma história de privilégio. Quando saiu do hospital e percebeu, a realidade, pela primeira vez, Miguel desejou sair a correr e recuperar os anos perdidos. «Eu queria tudo. Sair e fazer tudo, aproveitar ao máximo». 

Só a seguir toda a família teve consciência da dimensão do risco ultrapassado. «Se já éramos muito unidos, dali para a frente ficámos ainda mais. Temos uma preocupação constante uns com os outros», explica.

O amor recebido por Miguel não é de sentido único. «Somos muito próximos. O meu irmão Pedro é o meu melhor amigo e a pessoa com quem convivi desde sempre. A minha irmã Carla é a primeira mulher que amei, tirando a relação maternal».

Desde a cirurgia sucederam-se as boas notícias. «Tudo o resto é sempre a acrescentar. Passa a ser: o primeiro mês, o segundo, os três meses.  O ciclo de um ano, depois o ciclo de cinco anos. Fui ultrapassando tudo isso, sempre com a notícia: "Não há nada"».



A sua história foi considerada um milagre pelos médicos. Para Miguel, o verdadeiro milagre aconteceria muitos anos depois, com o nascimento dos dois filhos, Afonso e Maria Leonor. 

Hoje, aos 48 anos, mantém a mesma «paixão pela vida». É um homem realizado, trabalha em inovação e tecnologia. «Tive o privilégio de trabalhar numa empresa que simplifica o dia-a-dia, através da tecnologia», sintetiza. 

Lamenta não conseguir cumprir o seu maior sonho por conta da perda dos pais, em 2016. «Sempre tive um sonho. Sou benfiquista e, quando fizesse 50 anos de sócio, queria que o meu pai me colocasse a águia de ouro ao peito. Já falta pouco para chegar aos 50, mas ele não o vai fazer».


Miguel ainda gosta de visitar o Largo da Madorna, onde passou os primeiros anos de vida

A morte dos pais levou-o a acolher a paixão de sempre, a escrita. Em homenagem aos progenitores e a todas as lutas ultrapassadas, escreveu o livro “Viva la Vida", onde conta a sua experiência.

Entretanto, vive outros sonhos: «O meu sonho acontece todos os dias: ser feliz. Apetecer-me levantar da cama e continuar a fazer tudo o que faço, poder chegar a casa e estar grato pelo dia, ver os meus filhos crescer saudáveis e felizes. Ser amado, poder amar. Isso é um sonho». E, claro, «ver sempre o copo cheio».

 

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