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29 agosto 2024
Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Texto de Teresa Oliveira | WL Partners Fotografia de Ricardo Castelo Fotografia de Ricardo Castelo Vídeo de Nuno Santos Vídeo de Nuno Santos

O impacto dos outros

​​​​​Durante quase seis anos, Kiki viveu com alergias que lhe provocaram sintomas gravíssimos, sem perceber porquê. ​

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​​Kiki tem 15 anos de idade e vive com síndrome de ativação mastocitária, uma condição rara. Nos últimos seis anos, a sua vida foi marcada por dois tipos de pessoas: as sensíveis, que a impactaram positivamente, e as menos sensíveis, que a deixaram com um sentimento de revolta.


O seu amor pela dança é tal que a médica disse que podia ter alta às 17h15. Às 17h30 saiu do hospital e foi a uma aula de balé

Os sintomas são muito graves. Até há cerca de meio ano, quando começou a fazer imunoterapia, que a ajudou a controlar as consequências da sua condição, tinha reações alérgicas sucessivas, seguidas de choques anafiláticos (uma resposta alérgica grave, com risco de vida), que exigiam internamento hospitalar. A diminuição brusca da pressão arterial também a fazia desmaiar, e tinha um edema (vulgarmente conhecido como inchaço) generalizado, o que «além de ser perigoso», comenta a mãe, Cláudia Botelho, «é extremamente desconfortável e tem efeitos na autoestima». Quando acordava, Kiki «não sabia se vestia o número 40 ou o 32», diz.

Sem que o seu caso caísse exatamente na "caixinha" de uma qualquer doença ou condição – o seu diagnóstico demorou cinco anos e meio, vezes demais Kiki e a família tiveram de lidar com pessoas que desvalorizavam os seus sintomas, mesmo em ambiente clínico, porque estes não eram evidentes. “Ela está com bom aspeto!”, chegaram a ouvir. «“Pode estar com bom aspeto, mas não está bem. Olhe para ela!”», respondia a mãe. Kiki discorda. «Não era propriamente bom aspeto. Podia era não estar com aspeto de estar tão doente como estava».

Este tipo de comentários repetiu-se ao longo dos anos. «Ouvimos tantas coisas dessas, tantas, tantas» de pessoas conhecidas e desconhecidas, conta Kiki. “É nojentinha, é uma picuinhas — sai a ti, que também não gostavas de comer, és muito ansiosa e passas isso para a menina”, “tens de a largar porque isso é tudo mimo”, foram algumas frases ouvidas vezes de mais. Cláudia comenta que chega mesmo a ter discussões. «As pessoas não sabem o que é eu entregar a minha filha de manhã na escola e não saber como a vou encontrar ao final do dia. Se a vou buscar ao hospital, se a trago para casa», afirma, indignada.


As aulas de balé foram uma espécie de oásis

A imunoterapia reduziu e controlou os sintomas. «Felizmente, desde o início do tratamento não teve nenhum choque anafilático, mas tem sintomas de vez em quando», explica a mãe. «Algum desconforto, edema», com que a Kiki, «como de costume, tem lidado muito bem». Antes do diagnóstico e do tratamento tinha reações alérgicas graves de formas completamente inesperadas. «Já tive reações alérgicas a um perfume de uma professora, assim que ela entrou na sala. Já aconteceu mais do que uma vez», exemplifica Kiki. «É isso que muita gente não entende: basta um perfume ou algum cheiro», desabafa.

«Eu tenho alergias desde que nasci, mas até aos nove anos era só com frutos secos, e isso era controlável», explica. Numa sexta-feira igual às outras, tinha nove anos, seguiram o plano habitual de ir jantar fora. Kiki sentiu comichões, parou de comer e tomou a medicação, mas começou a ter dificuldade em respirar. Estava a ter um choque anafilático: levou uma injeção de adrenalina nas urgências e ficou uma semana internada nos cuidados intermédios e outra na enfermaria, onde se desencadearam novas reações alérgicas. Os exames às intolerâncias alimentares mostraram «alergia a todos os cereais menos o arroz, alergia a coco e a alguns frutos. Basicamente, podia comer carne, menos de porco, e peixe, arroz e batata», recorda.


A professora de balé e o administrador do colégio que frequenta

Conhecidos os "gatilhos" dos seus sintomas, não se sabia a razão porque o corpo reagia de forma tão drástica. Para Kiki foi a fase «mais complicada». As reações alérgicas graves sucediam-se de forma inesperada: desde os pedacinhos da borracha branca de apagar ou um bocadinho de farinha que inalasse do lanche dos colegas. A sua sensibilidade é tal que partículas minúsculas lhe provocavam «problemas respiratórios e edema na garganta – o que é extremamente perigoso», explica a mãe. No colégio que frequenta desde os três anos, ouviram a família e colocaram as necessidades da aluna em primeiro lugar. Dando como exemplo o lanche, refeição que todos faziam em conjunto na sala de aula, os restantes alunos começaram a comer no refeitório para prevenir o espoletar de alergias a Kiki. António Araújo, administrador do colégio, realça que o importante foi «olhar para a jovem e para a sua singularidade». Adaptarem-se à sua realidade e «não custou nada», afiança.


Na sala de aula teve muitas reações alérgicas

Apesar de todos os cuidados tomados em casa e na escola, «tinha muitas vezes choques anafiláticos, sem saber o que os causava», seguidos de internamentos ou estadias em casa, porque não se sentia bem. Durante esses anos difíceis, as aulas de balé foram «uma espécie de oásis», refere a professora Joana Antunes, que também sempre a apoiou. «Poucas vezes» viu Kiki «a quebrar a sério fisicamente», comenta.

«Apesar de ter todas as razões e motivos para isso, vi-a muitas mais vezes a persistir e a ser absolutamente resiliente». O seu amor pela dança é tal que, estando internada, a médica lhe disse que «se recuperasse, teria alta por volta das 17h30», lembra a mãe, o que lhe permiti​ria não falhar a aula de balé às 18h. Mal bateu a hora de saída, Kiki «foi chamar a enfermeira para lhe tirar o cateter. E foi à aula!».


Kiki e a mãe estão a escrever um livro, como forma de desabafar e ajudar as pessoas a entender a gravidade das alergias

Recentemente, filha e mãe decidiram escrever um livro. Os comentários que ouvia, e ainda ouve, deixaram-lhe uma marca profunda. «Primeiro, não são verdade, e depois não se dizem! Acabam por insultar a minha condição e todas as pessoas que sofrem da mesma situação», sustenta Kiki. Esta foi uma das «grandes razões» para avançar para a escrita, «uma forma de eu desabafar», adianta. Quer também «ajudar as pessoas a entenderem a gravidade que as alergias podem ter e quanto afetam a vida de quem delas sofre», procurando evitar que outros ouçam o que já ouviu e mostrar a pessoas com alergias «que não estão sozinhas nesta caminhada e que a vida pode melhorar».

A mãe revela que irá dar o «testemunho de como lidar com algumas situações, com pessoas menos delicadas ou sensíveis. Até fizemos uma lista de frases que não devem ser ditas, alertando para o impacto nas crianças e nos pais, como “ela comigo comia, deixava-se dessas coisas”».

Cláudia acredita que «não é por mal». «Acho que é mesmo por ignorância», interrompe-a Kiki. A mãe acredita que «é por não saberem o que dizer. Nessas circunstâncias, mais vale não dizer nada». E, insistem: é mesmo «importante transmitir às pessoas que, nestes casos, um bocadinho faz mal. Faz muito mal».​