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11 fevereiro 2017
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O homem que vê através dos sonhos

​​​​​​Rogério Rosa ficou quase cego com um ano e meio de vida. Caiu na rua e viveu sem-abrigo, mas fintou o destino. Hoje é um actor reconhecido.

​De que é feito um herói? Da matéria dos sonhos. Houve alturas em que Rogério Rosa não os teve. Não podia. «Não houve tempo», resume o actor e blogger amblíope – tem 24% de capacidade visual – que soma no currículo 13 filmes, 22 programas de televisão, entre séries e novelas, e nove peças de teatro.

Ainda há uma ligeira tristeza na voz ao lembrar esses tempos sem sonhos. Mas logo é superada pela vontade. Pela convicção de quem encontrou muitas pedras mas não desistiu do caminho. E hoje, aos 52 anos, Rogério ainda sonha.

Era bebé quando o sarampo quase lhe roubou a visão. «Tinha 18 meses quando se descobriu», precisa ele. Aos quatro anos tornou-se aluno do Centro Helen Keller (para crianças com incapacidade visual), em Lisboa.
 
Acabaria, «após uma passagem fugaz pela Casa Pia», por passar a adolescência no Instituto António Feliciano Castilho. Aos nove anos, a instituição tornava-se a sua casa. «Lá havia amblíopes, que é o meu caso, e cegos. E houve acompanhamento médico. Isso foi o que ajudou a estabilizar a doença, impedindo a cegueira», conta Rogério.

Tinha então apenas 24% de visão – os mesmos 24% de hoje. Vê um metro à frente, o resto é um imenso nevoeiro.

No colégio, dos nove aos 15 anos, não se apercebeu bem do problema. «Não deu tempo para ter sonhos porque já me sentia diminuído por não ver bem». «O que queres ser quando fores grande?», perguntavam os adultos aos alunos. «Nós não sabíamos, tínhamos todos deficiência de visão».

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A verdadeira percepção da diferença teve-a seis anos depois.

«Aos 15, fui para a escola oficial, sem deficientes, sem cegos... E a partir daí a minha vida nunca mais foi a mesma». Sentia vergonha quando tinha de «baixar a cabeça para ler» e se apercebia da curiosidade feroz dos colegas da escola. «Havia professoras de apoio que me davam livros com quase um metro de comprimento. Eram iguais aos dos outros, as gigantes, [para conseguir ver as letras maiores]. Tinha de baixar a cabeça mais do que os meus colegas e isso dava-me uma vergonha… Nunca queria ir ao quadro». O embaraço fazia com que estivesse «dois, três meses sem ir à escola».
 
Aos 17 anos, o pai, com quem vivia então, levou-o para a Carris, onde trabalhou «primeiro como telefonista e depois no apoio social». A experiência não durou muito. Aos 19 sem apoio nem afecto, a vida voltava a dar uma volta. «Acabei por ir para a rua. Dormia no Torel [em Lisboa], onde é hoje a praia. Na altura havia um lago com um buraco grande na parede, onde era o meu dormitório».

A rua acabaria por ser, de várias formas, o lugar que lhe daria a hipótese de sonhar. «Felizmente, encontrei uma cega que me encaminhou para a antiga Associação de Cegos Louis Braille, hoje ACAPO». Porquê felizmente? «Saí da rua e tornei-me uma pessoa completamente independente. Fui fazendo as coisas porque achei que as podia fazer».

Entre as «coisas» de que fala está, precisamente, a carreira de actor. Bem, «já o era no colégio», diz Rogério. A verdade é que nunca se considerara como tal e a experiência que tivera não fora boa.

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​«Na terceira classe tínhamos expressão dramática… A minha professora quis fazer o “Auto dos Reis Magos”, de Gil Vicente. Eu não tinha grande memória para decorar. E não ensaiava, achava aquilo muito chato», recorda. Na estreia, estava «tão envergonhado» perante o público – as famílias dos alunos – que se esquecia do texto. «Queria ver alguém da minha família», lembra. «E ali via mesmo, porque como estava sob o efeito de um foco de luz dava para ver a plateia. Engasgava-me, a minha professora estava sempre a debitar texto por trás da cortina porque eu só estava a ver quando é que aquilo acabava. Acabou a peça, fui lá fora e não vi ninguém… E entristeci. Não gostava de representação e ficava pior porque nem sequer me viam a fazer mal».

Em 1984, surgiu uma oportunidade de regressar ao teatro. Tinha Rogério 20 anos. Neste momento da conversa, a voz começa a aclarar-se, levada  pelo entusiasmo. «Houve o Festival da Malta, apresentado pelo Aristides Teixeira. Ele disse-me: “Não estás integrado em nenhum grupo. Por isso, ou escreves um monólogo em 24 horas ou não podes entrar», conta. «Eu queria muito entrar e não sabia escrever. De repente, deu-me uma inspiração e pensei: “Espera aí… e se eu aproveitasse ter sido sem-abrigo e passasse para o papel o que senti na altura?”».

Em menos de 24 horas entregou o texto. «Fui logo destacado para a primeira edição». Em palco, deu-se conta de que não estava nervoso. «Não havia plateia, não via ninguém… Éramos dez concorrentes».

Granjeou o segundo lugar e pensou: «Bom, se eu fiquei em segundo numa coisa destas é porque não sou tão mau como isso. Deixa-te lá dessas coisas de não gostares de representar, que isto agora começa a andar». Mas não andou.

Entre reviravoltas familiares, Rogério acabou por ficar em casa de amigos que o acolheram «para não ficar outra vez na rua».

Em 1996, voltou a subir ao palco, mas para cantar. «Havia um grupo de teatro de revista feito por cegos. Fui cantar ao Maria Matos, à Aula Magna, à Barraca… Entretanto, fui convidado para integrar o elenco, já como actor».

Integrou a marcha popular de São Vicente de Fora, vendo apenas «um metro à frente», até ao ano 2000. Participou em várias novelas e séries de TV e desenvolveu uma carreira no cinema. «Os filmes que mais me marcaram, pela falta de visão, foram “O Barão e o “Delírio em Las Vedras”, ambos de Edgar Pera, «devido às cenas em que precisava de ver ao longe». Trabalha decorando bem os textos e, por vezes, com a ajuda das equipas em que é integrado.

A escrita é outra das suas paixões e a ambliopia não o impede de a explorar. Escreve «histórias de vida» para a Revista + e crónicas no seu blogue “A Estrela que Há em Mim”. Formou-se em Serviço Social e está a fazer uma formação de técnico auxiliar de Saúde. Hoje, Rogério tem sonhos e a certeza de que os vai concretizar: «Quero ser uma peça fundamental, veja ou não veja».

 

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