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2 junho 2018
Texto de Carlos Enes e Rita Leça Texto de Carlos Enes e Rita Leça Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«O futebol é a alegria do povo»

​​​​​​​​​​​O padre octagenário que vive o futebol como qualquer outra pessoa.

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​REVISTA SAÚDA: O futebol é a alegria ou é o ópio do povo?
PADRE MELÍCIAS: Alegria, um alegrão! O problema é que alguns tentam instrumentalizar as pessoas para fins que são mais de ópio e, portanto, negativos. Felizmente, o povo prefere piar do que ser opiado. Julgo que o futebol, não só em Portugal, mas no mundo todo, deveria criar – e por vezes cria – momentos de aproximação entre diferentes etnias, culturas, religiões. É um espectáculo que tem grande capacidade de mobilização. As pessoas envolvem-se muito.
 
 

 
Acha que as selecções fazem tudo para fomentar a paz entre os povos?
Já houve tentativas nesse sentido: o Mourinho, o Ronaldo, em Timor, ou entre israelitas e árabes no Médio Oriente. Mas, devia-se aproveitar mais. Estamos a globalizar tanta coisa, a economia, a cultura, por que não globalizarmos também a tolerância e a alegria do futebol? Devia-se globalizar isso. Somos todos cidadãos do mundo, por que não havemos de ser também todos adeptos do mundo? Não é para sermos inimigos, mas antes adversários, com respeito pelo outro, sabendo valorizar a diferença. Fazer a unidade, com respeito pela diversidade. É uma urgência!
 

 
 
O que diz a este clima de guerrilha entre os clubes em Portugal?
É uma realidade insuportável. Mas, assim como eu sinto uma enorme tristeza, também sinto que há muitos portugueses que detestam esse tipo de clima. São interesses, muitas vezes, sem rosto. Até no meu próprio clube. O Sporting tem outra dignidade, outros valores, outra história. É preciso que, quem nos dirige ou orienta, assuma outro tipo de responsabilidade e comportamento discursivo.
 
Como recebeu os episódios de violência e corrupção no Sporting?
Com enorme preocupação e profunda repulsa. Não apenas como sportinguista, mas como português e cidadão universal. Acontecimentos deste tipo não pode admitir-se em parte nenhuma do mundo. Influenciam muito negativamente a ética, a estabilidade e a harmonia social. Lamento muito que seja o Sporting, clube de tão nobres tradições, a proporcionar este triste espectáculo.
 
Como se tornou adepto?
Foi muito fácil. O meu pai era o sportinguista mais ferrenho que conheci até hoje. Nós éramos nove irmãos. Lá em casa, ou éramos do Sporting ou levávamos (risos). Além disso, era o tempo dos Cinco Violinos, do João Roque, mais tarde do Joaquim Agostinho… E aqui, em Torres Vedras, a maioria da população era sportinguista. Para nós, ser sportinguista era como respirar, como viver e, quando ganhava – e ganhava quase sempre, era um alegrão. Quando havia algum 'desastre', a gente até chorava! 
 

 
 
Ainda fica triste com as derrotas?
Eu ainda fico triste, mas não sou daqueles que não compreendem. A derrota faz parte do desporto. Para alguns ganharem é preciso que outros percam.
 
E para o Mundial, confia no nosso seleccionador?
Tenho imensa confiança, tanto como homem, pelo seu testemunho de vida, como, sobretudo, pela sua capacidade técnica. Julgo que os portugueses têm todas as razões para confiar nele e esperar um bom Campeonato do Mundo. Mas também com muito realismo e muita humildade.
 
Em que lugar acha que vai ficar Portugal?
Pela minha vontade, em primeiríssimo! Mas também podemos ficar em segundo, terceiro, quarto… Abaixo disso, já me faria sofrer.
 
Sonhou ser futebolista quando era criança?
Jogávamos futebol lá na aldeia, com uma bola de trapos. E depois também no seminário. Naquele tempo aquilo era forte e feio (risos). Criávamos torneios entre seminários. Eu jogava a médio centro e era considerado… respeitável. Ainda tenho o cartão da Associação de Futebol de Lisboa.
 
Como descreve a sua infância, numa família com nove irmãos?
Muito feliz. Os tempos eram difíceis, nasci em 1938 e nessa época sofria-se muito, em especial nas aldeias pobres. Vivíamos com dificuldades económicas, mas com enorme alegria. E ajudávamo-nos muito uns aos outros. A gente entretinha-se com qualquer coisa: qualquer grilo a sair de um buraco era uma festa! Fui feliz! Aliás, devo dizer que fui feliz toda a minha vida. Se calhar por inconsciência... Até agora, com 80 anos, posso dizer que sou feliz. Julgo que não devo nada a ninguém, Deus queira que não, e tenho a certeza de que ninguém me deve nada a mim.

 
 
Já contou que os seus irmãos, por piada, diziam que tinha ido para padre para não trabalhar.
Se calhar…! (risos) Havia muito aquela ideia de que os padres não trabalhavam. Um dia, no comboio, devia  ter uns 11 ou 12 anos, um ferroviário disse-nos: «Vocês vão para padres? Isso é para não trabalhar. Vocês são uns exploradores do povo!». Mais tarde, numa crise de vocação, senti o eco deste tipo de diálogo. E foi o prior de Carnide, mais tarde bispo de Santarém, que me deu alento: «Não tenhas esse problema. O padre pode ser a pessoa mais útil na sociedade».
 
Não se pode dizer que lhe tenha faltado trabalho.
Hoje posso dizer que trabalhei muito e com gosto. Graças às circunstâncias da vida, pude ser bombeiro, padre, professor, dirigente nacional em várias áreas, até desportivo! Sempre tive a vontade e a satisfação de viver com o povo. Aliás, o Papa João Paulo II definiu os frades franciscanos como «os frades do povo». Vivo em Torres Vedras e aqui sou sócio de todas as organizações: da misericórdia, dos bombeiros, da associação Amigos de Torres… 
 
 

 
Sentiu muitas dúvidas em relação ao sacerdócio?
Sim, por vezes. Aquela situação no comboio foi uma delas. Depois, houve outras. Toda a gente tem. O celibato, por exemplo, é uma coisa que não é fácil.
 
 

 
​Como é que um rapaz novo resiste às raparigas?
Com muito sacrifício, muita reza e muita convicção. E, sobretudo, tendo um objectivo. Embora defenda que hoje o celibato do clero deva ser opcional. Pode ter tido algum sentido durante alguns períodos da História, mas hoje já não.
 
 

 
Pela sua experiência, é a causa de muito sofrimento?
Sim, sim. E há grandes padres, eu conheci variadíssimos, que podiam ter sido tão úteis à sociedade e à própria Igreja, e que abandonaram por causa disso. É uma pena.
 
Faz 80 anos no próximo dia 25 de Julho. Qual é o segredo da sua vitalidade?
O segredo, sobretudo, vem lá de cima. Ninguém é dono da vida, nem de si mesmo. A vida conventual ajuda bastante, há serenidade. Depois, uma alimentação regrada, sem excessos. E faço caminhadas. Muitas vezes digo aquela fórmula popular, de que a partir de certa idade «menos prato e mais sapato».
 
Conseguiu manter sempre esse equilíbrio?
Bom, disparates toda a gente faz. E ainda bem, é sinal de que somos seres humanos. Senão era um anjinho, a última coisa que eu quereria ser.
 
 

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