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4 outubro 2017
Texto de Maria João Veloso Texto de Maria João Veloso Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O Parlamento do Bairro

​​​​​​​​​Os utentes aviam receitas médicas e deixam receitas de bacalhau, doces e cozinha africana.

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Farmácia de Marvila - Bairro de Marvila, Lisboa

A Farmácia de Marvila é um estabelecimento democrático. Os utentes todos os dias fazem ouvir a sua voz sobre os assuntos da actualidade. Por exemplo, António Silva, de 61 anos, insurge-se com as declarações que recentemente atingiram os ciganos. Está indignado, porque «nem todas as pessoas de etnia cigana recebem rendimento mínimo ou são traficantes de droga».

No bairro desde 1995, a directora-técnica, Isaura Martinho, medeia os debates. «Ó​ senhor António, deixe a dona Fernanda dizer o que precisa, que ela tem de ir fazer o almoço». Nascida em Marvila, vem à farmácia dia sim, dia não, afim de medir a tensão arterial. Trata a «doutora» como uma velha amiga. «É uma excelente pessoa e quando queremos um conselho vimos cá ter com ela». No princípio do século XX, os pais vieram de Resende para trabalhar na zona fabril da cidade.

«Era um bairro com muita gente que, como eu, vinha do distrito de Viseu», explica Isaura Martinho. A farmacêutica nasceu em Ribeiradio, concelho de Oliveira de Frades, geografia denunciada por um leve sotaque e pelo saudável à-vontade próprio das pessoas da província. «Nós partilhamos tudo, desde a conversa pessoal e íntima à questão da terapêutica. Tudo o que possa imaginar é falado aqui na farmácia». Consoante os assuntos, as conversas correm no gabinete de atendimento privado, ao balcão ou na área pública de atendimento. «Os casos de violência doméstica, gravidez indesejada, consumo de drogas ou alcoolismo são tratados em particular no meu gabinete». Felizmente, há outros temas. «Nunca fico só atrás do balcão. Passo sempre para o lado de lá, para que os utentes possam sentir que estão em casa».

E os utentes de todas as idades comportam-se como tal. Iara e Mara, filhas de Cátia Vanessa Alves, ora saltitam pela farmácia ora fazem desenhos, que têm honras de exposição no estabelecimento. Desde 2012 que Cátia, hoje com 30 anos, tem uma algoneurodistrofia que a impede de trabalhar. «Uma entorse afectou-me a perna direita e fiquei com uma dor crónica». Vem à farmácia todos os dias, enquanto espera ser chamada para uma junta médica. «As pessoas da farmácia fazem parte da minha família». De facto. Isaura Martinho foi sempre a primeira a saber das suas gravidezes.

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As "artistas" Iara e Mara Alves, com Isaura Martinho

Há quem confesse que a «doutora» fia medicamentos regularmente. Adelino Silva conta que se não tiver dinheiro leva os medicamentos na mesma, «depois mais tarde venho cá pagar». A maior parte das pessoas honra os seus compromissos, mas há excepções. E a farmácia tolera-as. «Não vou negar antibióticos a uma criança, mesmo sabendo que a mãe nunca irá pagar», expõe Isaura Martinho. Para ela, «resolver um problema social é mais importante do que a questão financeira».

Acompanhamento de doentes diabéticos, controlo do colesterol, tratamento de feridas e a administração de injectáveis e vacinas são os serviços mais procurados. A Farmácia de Marvila trabalha muito na adesão e revisão terapêutica, já que «há doentes que têm caixotes de medicamentos em casa e não sabem para que servem». Há alturas em que é preciso recorrer ao telefone e dar o alerta. «Será que tomaram a sua heparina? Se não aparecem, temos que telefonar, para saber se o doente está bem ou está internado».

Em 1995, quando adquiriu a farmácia, ainda na Rua Direita de Marvila, Isaura Martinho chegava a trocar 100 seringas por dia. «Hoje, o consumo de heroína deixou de ser visível e praticamente não troco seringas porque não tenho consumidores», conclui. Tem antes muitos consumidores de afectos, pessoas gratas que gostam de agradar a quem os trata como iguais. Alguns, «quando vão à terra, trazem-me um bom chouriço ou uma tacinha com figos».​

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Rui Santos vive em Londres. Sempre que regressa a Lisboa vem visitar a amiga Isaura Martinho

De origem cabo-verdiana, Rui Santos sempre viveu no bairro. Há cinco anos mudou-se para Londres, onde trabalha como camareiro no Jumeirah Carlton Tower. Quando volta às origens faz questão de passar pela farmácia, só para «dizer adeus a esta doutora, que está sempre pronta a ajudar as pessoas». Conhece-a desde que era criança de colo. Hoje, «era capaz de aprender a fazer uma cachupa só para lhe agradecer. Ela merece».

Os moradores vão à farmácia aviar as receitas médicas mas também trocam receitas de bacalhau, bolos, vivências e confidências. E assim se estabelecem relações de confiança invisíveis ao olhar. Para Isaura Martinho, a multiculturalidade é uma aprendizagem permanente. Foi atraída para a gastronomia africana, e compra roupa e carteiras aos utentes ciganos. «Para se ser farmacêutico é preciso gostar das pessoas. Os meus pais sempre me ensinaram a dar aos outros aquilo que eles não têm. Na minha aldeia fui a única menina a estudar».

Trouxe de Ribeiradio esses valores familiares quando adquiriu aquela farmácia pequenina, de 30 metros quadrados, que parecia ter um problema crónico de insolvência. Desde o primeiro dia, Isaura meteu mãos à obra para contrariar o destino. «Toda a gente começou a perceber que eu era uma doutora da terra deles e ainda por cima mulher». O estabelecimento multiplicou os serviços à população. Em 2000, Isaura Martinho mudou-se para o lote 35 da Rua Eduarda Lapa. Hoje, sente-se parte integrante do bairro, participa em várias associações e desenvolve múltiplas actividades junto da comunidade. Quando arrancar o ano lectivo, vai regressar às escolas, para falar de grandes temas de saúde pública em Marvila, como higiene, piolhos, contracepção e doenças sexualmente transmissíveis.

 

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