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6 setembro 2021
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O Abem comum

​Breve história de uma rede solidária.​

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Há cinco anos, Mariana Alcaparra, hoje com 70, tornava-se a primeira pessoa do país apoiada pelo Programa Abem: Rede Solidária do Medicamento, o que lhe permitiu adquirir, sem custos, os medicamentos prescritos pela sua médica. A novidade apanhou-a de surpresa, quando lhe foi anunciada no Centro Comunitário Paroquial de Rio de Mouro, uma das entidades referenciadoras dos beneficiários ao programa. «Foi como uma luz na minha vida», recorda.


«Foi como uma luz na minha vida», recorda Mariana Alcaparra, primeira beneficiária do Programa Abem

A antiga secretária de um escritório de advogados, com uma doença cardíaca grave, viu-se numa situação limite quando, depois de uma sucessão de maus momentos, ficou sem emprego e na condição de cuidadora dos pais, incapacitados. «Vivíamos dignamente, mas com grandes dificuldades, da pequena reforma deles». Quando faleceram, era velha para trabalhar e nova para se aposentar: ficou sem meios de subsistência. Foi-lhe atribuído o Rendimento Social de Inserção, 150 euros que lhe permitiam pagar o quarto. Sobravam-lhe 25 para gerir o resto do mês, «e só em medicamentos eram precisos entre 40 a 70». Confessa que foram muitas as vezes que foi hospitalizada por não conseguir comprar os medicamentos receitados, mas nunca contou o motivo aos médicos.

Diz conhecer o sabor amargo do orgulho, porque o pouco que tinha teve de o engolir ao ver-se obrigada a pedir ajuda para a comida, a água e a luz. «Era uma tortura tão grande! Encontrava conhecidos nos serviços que sabiam da minha vida passada e ainda não sei onde fui buscar coragem para falar com eles, porque via o quão inacreditável julgavam a minha situação. A dada altura senti-me anestesiada. Sempre fui uma pessoa de fé, mas nesse período…».

Foi só quando apresentou o cartão de beneficiária na Farmácia Serra das Minas, em Rio de Mouro, que Mariana entendeu verdadeiramente o significado do Programa Abem. «Lembro-me de ter ficado incrédula, e de perguntar: “Mas eu não tenho mesmo de pagar nada?”».

Não tinha. O Programa Abem, dinamizado pela Associação Dignitude, assegura o pagamento da parte não comparticipada da medicação prescrita a pessoas carenciadas. Em cinco anos, já prestou apoio a 23.311 beneficiários na aquisição de mais de um milhão e cem mil embalagens de medicamentos. A Rede Solidária do Medicamento é assim chamada por assentar numa série de parcerias – 219, em todo o território nacional, com entidades locais que referenciam as pessoas em situação de maior fragilidade económica e social ao programa. Os beneficiários recebem o Cartão Abem, idêntico a um qualquer cartão multibanco, bastando apresentá-lo numa das 1.069 farmácias parceiras para poderem adquirir os medicamentos que lhes forem receitados.


Maria João Toscano recorda que as farmácias estão na génese da Associação Dignitude

É precisamente nas farmácias que se encontra a génese do Abem. Tal como recorda a directora executiva da Associação Dignitude, eram inúmeros os relatos que chegavam do terreno à Associação Nacional das Farmácias (ANF), dando conta de utentes que não tinham dinheiro para pagar os medicamentos. Faltavam, contudo, dados objectivos que ajudassem a contabilizar esta realidade, a qual viria a ser evidenciada com a publicação de dois estudos, um da OCDE e outro da Universidade Nova, que mostravam que, em cada dez portugueses, um não conseguia comprar os medicamentos por falta de meios. «Estes indicadores foram o mote para o envolvimento de dois sectores habitualmente separados, o Social e a Saúde, de modo a fazer face a um problema que é grave», diz Maria João Toscano, frisando que os associados promotores da Dignitude – ANF e APIFARMA, Cáritas Portuguesa e Plataforma Saúde em Diálogo – são precisamente dois do sector da Saúde e dois da área Social.

Foi no seio da nova associação que o Programa Abem foi pensado e desenhado de A a Z, «e uma das preocupações primeiras era que não houvesse qualquer confusão entre o dinheiro doado para apoio aos beneficiários e os custos de funcionamento da Dignitude, que foram desde logo assumidos pelos associados promotores», sinaliza a responsável. Mais tarde, o apoio da Portugal Inovação Social, através de Fundos da União Europeia, e dos investidores sociais, alavancaram o crescimento estrutural do programa, permitindo-lhe alargar-se mais rapidamente a todo o território continental e às ilhas, ao mesmo tempo que tornou possível o desenvolvimento da plataforma tecnológica em que o Abem assenta e que une todos os elementos da rede solidária. Daí que se possa afirmar taxativamente que todas as contribuições feitas ao programa são integralmente depositadas no Fundo Solidário Abem, um fundo fechado, auditado e exclusivamente dedicado à cobertura da despesa realizada pelos beneficiários com as terapêuticas receitadas pelos médicos.


«O Abem apoia os mais pobres entre os pobres», assinala Maria de Belém Roseira

«O Abem é um programa de combate à exclusão social, que apoia os mais pobres entre os pobres», assinala Maria de Belém Roseira. A embaixadora da Associação Dignitude lembra que, segundo os indicadores do INE, antes das transferências sociais, 40 por cento da população em Portugal é pobre, «e uma parte está em situação de privação severa». O Abem não consegue atingir a totalidade dos que se estima serem perto de um milhão de carenciados deste apoio, «mas consegue chegar àqueles que, de entre todos, estão em situação pior, trabalhando com quem já está no terreno», diz. 


António Arnaut (1936-2018) foi um dos fundadores da Associação Dignitude

Para Maria João Toscano, essa é a grande inovação e virtude do Abem: o seu espírito agregador. «O programa não nasceu para ser mais um, mas antes somar mais-valias ao que muitos já faziam. O nosso trabalho foi provar a autarquias, IPSS, Cáritas, misericórdias, que juntos somos mais fortes e chegamos mais longe do que separadamente. Hoje estamos organizados de um modo em que, havendo regras, deveres e responsabilidades iguais, todas as partes contribuem, se sentem envolvidas e ganhadoras». Motivo pelo qual Maria de Belém não tem dúvidas ao inscrever a rede solidária no espírito da economia social, explicando que as instituições parceiras não estão em concorrência, mas articuladas «no respeito pelos direitos fundamentais de quem precisa de ser ajudado e para aproveitar aquilo que cada um sabe fazer melhor». O resultado desta colaboração é evidenciado na melhoria da saúde das pessoas, mas vai muito além disso: diminui o absentismo laboral e escolar, promove o equilíbrio familiar, traz maior tranquilidade quotidiana, etc... «O seu impacto foi avaliado em cerca de oito euros de retorno por cada euro investido, o que é muito significativo», considera. 


O padre Carlos Gonçalves e Paula Bernardino garantem rigor na selecção dos beneficiários

O Centro Comunitário Paroquial de Rio de Mouro é testemunha da mudança operada na vida das pessoas apoiadas. O padre Carlos Gonçalves, que preside à direcção daquela que foi a primeira entidade a referenciar beneficiários, valida as repercussões, enfatizadas pelo facto de esta ser uma iniciativa que se destina a quem realmente precisa. «Sempre defendi que temos de ajudar os verdadeiramente necessitados, não os oportunistas. É aí que muitas iniciativas de caridade falham: na verificação daquilo que nos dizem, porque, infelizmente, as pessoas mentem. Este programa tem sido fantástico até nisso». Paula Bernardino, que presta apoio administrativo no Centro e tem a seu cargo a ligação processual ao programa, reforça que a triagem dos casos é levada muito a sério. «Dar a quem não necessita é tirar de quem tem fome, por isso as irmãs, as assistentes sociais e os voluntários, antes de concederem qualquer apoio, vão à casa das pessoas. Apuram as condições em que vivem, tentam perceber os seus problemas de saúde, certificam-se das suas fragilidades financeiras». A pandemia interferiu na metodologia, é certo, e «hoje ninguém vai à casa de ninguém», diz. Mas, tal como contrapõe o padre Carlos Gonçalves, também por isso o número de beneficiários referenciados não evoluiu, «tirando um ou outro caso flagrante de necessidade».


«Ao balcão, damos conta da gravidade dos problemas de muitas pessoas», relata a farmacêutica Joana Santos

São muitas as pessoas em circunstância difícil que continuam a ser primeiramente sinalizadas nas farmácias, e na Serra das Minas «várias foram e continuam a ser encaminhadas para referenciação no Centro Comunitário, porque nós aqui, ao balcão, damos conta da seriedade dos seus problemas», afirma a farmacêutica Joana Santos. Mariana Alcaparra foi só a primeira beneficiária, outros se lhe seguiram e continuam a aparecer todos os dias. São pensionistas pobres, sem dinheiro para as refeições de cada dia, durante um mês. E também pessoas em idade activa, mas com salários baixos e crianças a cargo. «As contas correntes são comuns. Não é fácil às farmácias, que são próximas das pessoas e conhecem as suas adversidades, dizer-lhes que não. Principalmente quando um “não” significa ficar sem tomar um medicamento importantíssimo, muitas vezes salva-vidas». Foi por um enorme sentido de responsabilidade que Joana assegura que a Serra das Minas foi a primeira farmácia do país a aderir ao Programa Abem. «Nem precisei de assistir até ao fim à apresentação que fizeram. Assinei logo o formulário de adesão». Cinco anos depois, o balanço é construtivo: «Permitir às pessoas em grande dificuldade económica aceder gratuitamente aos medicamentos, sem terem de se expor, é bom para todos os lados: obviamente para as próprias; mas também para as farmácias, que se sentem confortáveis sabendo que os utentes vão fazer a terapêutica correctamente; e para a sociedade como um todo, porque é muito mais barato e ético evitar os problemas do que ter de tratar casos entretanto agravados, os quais muitas vezes acabam em internamentos ou pior».

Mariana conhece bem a equação, e toda ela é assertividade ao descrever a diferença que o programa fez na sua vida: «É um milagre estar viva! Agradeço a Deus todos os dias por poder fazer a medicação certa e pela paz que o Abem me trouxe, porque só com a reforma não seria possível. Espero que outras pessoas possam também ter esta luz, e que este cartão abençoado nunca me falte. Que desapareça eu primeiro».


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«A SALVAÇÃO DE TODOS»
Filipe Almeida, presidente do fundo público Portugal Inovação Social
«O Programa Abem é um belíssimo exemplo de inovação social, porque veio dar resposta a um problema para o qual ainda não existia uma solução consistente, justa e eficaz. E a demonstração de que a justiça distributiva não está só na mão do Estado, está igualmente na poderosíssima mão provocadora da sociedade civil organizada. Através de uma virtuosa parceria com entidades públicas e privadas, mobiliza os investidores sociais e o Estado, através do financiamento gerido pela Portugal Inovação Social, mas também desafia a sociedade civil a envolver-se e a contribuir. Por isso, além do impacto directo na vida dos beneficiários, o Abem também alerta consciências, promove a cidadania participativa, reforça laços intracomunitários e desperta em cada um de nós a humanidade que pode ser a salvação de todos». 


«IMPACTO REAL»
Ana Margarida Azevedo Pereira, secretária-geral da Fundação Ageas
«A Fundação Ageas apoia o Programa Abem desde 2018. Trata-se de uma iniciativa linda, que procura garantir que todos os portugueses tenham acesso aos medicamentos de que precisam, de forma digna e justa. Ao assumir o papel de investidor social, a Fundação Ageas quer contribuir, de forma muito concreta e próxima, para a qualidade de vida e melhoria na saúde da população mais vulnerável, e sabemos que através da parceria com a Associação Dignitude o estamos a fazer com credibilidade, confiança e impacto real. Prova disso são os excelentes resultados obtidos nestes primeiros cinco anos e a continuação da nossa parceria para o futuro, tentando alcançar cada vez mais beneficiários, pois, infelizmente, as necessidades aumentaram ainda mais com a crise pandémica actual».


«TEMOS OS MESMOS VALORES»
Virgílio Boavista Lima, presidente da Fundação Montepio
«A Fundação Montepio assume-se como o braço do grupo de empresas que constituem a Associação Mutualista Montepio na área da responsabilidade social externa, tendo-se associado ao Programa Abem, inicialmente, através da Associação Mutualista e, mais recentemente, através da própria Fundação, na qualidade de investidor social. O objectivo do Programa Abem, assim como o impacto social que alcança junto das comunidades mais desfavorecidas, vai ao encontro das Linhas de Orientação Estratégica da Fundação Montepio e da política de responsabilidade social externa do grupo. Ao longo de cinco anos, a Fundação Montepio tem vindo a colaborar com diversas actividades da Associação Dignitude, a bem da saúde da comunidade, solidariamente e de acordo com os seus valores e princípios fundadores».​