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Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Lições para a vida

​​​​​Há uma escola que garante a qualidade e a segurança dos novos serviços das farmácias.

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Em Palmela, o Sol e as nuvens lutam por cada palmo de céu. Lúcio da Costa Calha, de 81 anos, faz a paragem habitual na Farmácia Coelho Marques. O antigo mecânico senta-se num banco e aconchega no colo a inseparável bolsa azul. Não é capaz de dizer o nome da doença que o levou a ficar ostomizado. Só sabe que foi em 2013, há seis anos. Uma diarreia persistente, inesquecível. Acabou no Hospital S. Bernardo, em Setúbal. Os exames revelaram o intestino grosso deteriorado. Deu entrada no bloco operatório nesse mesmo dia. Em três meses, foi operado oito vezes. Da última, trouxe dois sacos agarrados ao corpo. Só um permanece consigo, e Lúcio diz que assim continuará, «até ao dia em que descer à terra».


Antes de ser seguido na farmácia, Lúcio apanhava um táxi e dois autocarros para levantar os produtos de ostomia no hospital

A seu lado, de pé, está Alice Mota. É doméstica, tem 60 anos e vive há cinco para os pais, ambos perto dos 90. «São a minha companhia». Ele, doente oncológico, está ostomizado há dois. Alice recorda as sucessivas ondas de medo que sentiu. Primeiro foi o diagnóstico do cancro e o siamês espectro da perda. Depois, quando o pai saiu da cirurgia aos intestinos com um saco preso no abdómen, sentiu-se invadida pelo pavor profundo de ser incapaz de lhe retribuir os cuidados que recebeu em criança. «Não foi fácil lidar com aquilo. Ainda não é. Mas o amor supera tudo».

Lúcio e Alice não se conhecem. Apesar disso, têm muito em comum. Vivem em Palmela e até há dois anos tinham de deslocar-se a Setúbal para adquirir os materiais de ostomia. «O médico proibiu-me de conduzir, de modo que tinha de apanhar dois autocarros e um carro de praça para chegar ao hospital», conta Lúcio. «Era uma trabalheira e custava muito caro», remata, com uma palmadinha na bolsa azul. Nela transporta sacos suplentes. Para onde ele for, ela vai. 

Alice, que também não conduz, faz eco dos argumentos e soma mais um: «Perdia muito tempo, sabe? Aquilo era um stress para mim, porque sou eu que faço a higiene do estoma e troco os sacos ao meu pai, o que tem de acontecer várias vezes por dia para não ferir a pele. Ausentar-me era um terror».

Tudo mudou a partir de 1 de Abril de 2017. Os produtos de ostomia passaram a ser comparticipados a 100% nas farmácias, desde que prescritos de forma electrónica por um médico. «Felizmente, os políticos lá se resolveram e a médica de família passou a dar-me a receita para vir aviar aqui na farmácia. E sabe? A farmácia tem sido o meu braço direito», relata a sexagenária cuidadora dos pais.

O novo regime de acesso às ostomias é um sucesso. A disponibilidade do profissional de farmácia que dispensou os produtos recolheu 98,5% de respostas positivas num inquérito em envelope fechado conduzido pelo Centro de Estudos e Avaliação em Saúde (CEFAR), que contou com a participação de 304 doentes e 156 cuidadores. Como se explica este resultado, numa área que se tornara praticamente desconhecida para os farmacêuticos comunitários?


A Farmácia Coelho Marques, de Palmela, apoia vários doentes portadores de ostomias

O director-técnico da Farmácia Coelho Marques lembra-se de técnicos mais antigos recordarem em conversa a dispensa desses produtos. «Mas depois o fornecimento passou a ser feito a partir das associações e esse conhecimento perdeu-se», relata Tiago Nunes. «Não estávamos, obviamente, preparados para a prestação de um serviço de qualidade aos portadores de ostomias. Valeu-nos a formação da Escola», reconhece o farmacêutico.

A Escola de pós-graduação em Saúde e Gestão (EPGSG) da Associação Nacional das Farmácias (ANF) é a arma, pouco secreta, da rede. Fundada em 1983, muito antes da vaga de fundos comunitários para formação profissional, continua a responder a qualquer novo desafio profissional colocado aos farmacêuticos e técnicos das farmácias comunitárias. «A nossa missão é ajudar as farmácias a serem a rede de cuidados de saúde mais valorizada pelas pessoas», resume a farmacêutica Isabel Jacinto, coordenadora da EPGSG.


Em cinco meses, a Escola deu formação completa em ostomias a 745 farmacêuticos

O novo regime de dispensa nas farmácias dos produtos de ostomia voltou a demonstrar a capacidade de resposta da instituição de ensino. A legislação foi publicada em Diário da República em 4 de Novembro de 2016, para entrar em vigor cinco meses depois. A EPGSG respondeu de imediato. Logo em Dezembro, pôs em prática um plano intensivo de formação em ostomias. Promoveu 29 sessões em todo o país, em que participaram 745 formandos. «A nossa principal preocupação era dar a conhecer os produtos e ensinar a lidar com eles, mas falou-se também dos traumas que os doentes e os seus cuidadores enfrentam, e de como a farmácia pode ajudar a desmistificar algumas ideias», relata Isabel Jacinto.

«Foi um bálsamo», descreve Sandra Pinto, farmacêutica-adjunta na Farmácia Coelho Marques.  Participou com Tiago Nunes na sessão de formação realizada em Setúbal. O carácter «acentuadamente prático da formação» permitiu-lhe «ultrapassar a insegurança que sentia face a uma nova categoria de produtos».


«A Escola está pronta a responder a novas exigências de serviços», garante a coordenadora, Isabel Jacinto

A EPGSG aposta em técnicas de «capacitação» dos formandos, expõe a coordenadora. «Queremos que quem passa pela Escola, para além de saber como se faz, saiba fazer», declara Isabel Jacinto. O objectivo é garantir, sempre, elevados padrões científicos e técnicos à intervenção profissional das farmácias junto dos utentes. A instituição dispõe de uma da bolsa de formadores e de uma rede alargada de consultores especializados, que activa sempre que necessário. A política de parcerias é muito abrangente, com a competência como único critério. Para garantir a qualidade de ensino, a Escola recorre a professores universitários e a toda a sorte de especialistas em Saúde e Gestão.

No caso das ostomias, a formanda Sandra Pinto recorda como «a participação da enfermeira especializada foi extremamente útil». Aprendeu com ela as técnicas, as palavras certas e as posturas que desbloqueiam problemas. «Sei que nestes dois anos já ajudei muitos utentes», refere a farmacêutica de Palmela.


«A farmácia tem sido o meu braço direito», sublinha Alice Mota, cuidadora do pai, ostomizado

«A farmácia tem sido o meu braço direito», confirma Alice Mota. Lúcio da Costa Calha declara-se «despachado», enquanto guarda os cremes que veio buscar na bolsa azul. Confia que lhe aliviarão a pele, “queimada” pelos discos de ostomia, até que a dermatologista tenha tempo para o receber. Mora junto ao Castelo de Palmela. Ainda é longe para alguém com a sua condição e a chuvinha “molha parvos” que começou a cair nunca é boa companhia. «Há quem me vá pôr as coisas à porta de casa, mas eu prefiro vir aqui. Gosto das pessoas, sou muito bem tratado. Vale a caminhada», afirma, antes de meter pés ao caminho.

Alice ainda fica. O pai não se adaptou aos sacos novos, os anteriores estão esgotados, e a farmacêutica Sandra está a tentar ajudá-la. «São impecáveis. É gente incansável no apoio que nos presta. Se alguma vez há disto noutros lados! Que nunca nos faltem!». As palavras saem-lhe num suspiro. Senta-se numa cadeira acusando cansaço. Ser cuidador é trabalho sem folga.

Em 36 anos, 114.738 formandos frequentaram 4.123 cursos promovidos pela EPGSG. A instituição assegura a formação contínua das equipas das farmácias, mas também acumulou grande experiência na organização de formações “à medida” em temas inovadores e por vezes inesperados. «É algo comum. Acompanhamos a agenda política e, no momento em que é necessário, a Escola responde com propostas formativas aos desafios lançados às farmácias», relata Isabel Jacinto. Nos últimos anos, começou a capacitar os farmacêuticos comunitários para a dispensa de medicamentos contra a sida e a realização de testes rápidos a doenças infecciosas. São serviços novos, ainda em fase de projectos-piloto localizados.

No concelho de Cascais, 21 farmácias aderiram ao projecto Fast Track Cities. Desde Outubro do ano passado, fazem testes rápidos de rastreio às infecções pelos vírus VIH e das hepatites C e B. A implementação do serviço obedeceu à condição prévia obrigatória de participação numa acção de formação específica, na qual a EPGSG esteve envolvida, em parceria com a Ordem dos Farmacêuticos e a associação Ser+. Em 2018, foram formados 28 farmacêuticos. Este ano, outros 29 participaram numa segunda acção de formação. «Quisemos dar condições às farmácias aderentes para formar mais colaboradores, de modo a garantir a disponibilidade do serviço durante todo o período de atendimento ao público», explica Isabel Jacinto.


Pedro Rosa elogia a qualidade dos formadores

Pedro Rosa, farmacêutico-adjunto da Farmácia Alto da Castelhana, de Alcabideche, foi um dos primeiros formandos. Para ele, o desafio não estava nos testes em si próprios. «Há tecnicidades a ter em conta, mas as farmácias têm histórico nesta área», refere. No curso aprendeu coisas mais importantes. Ficou a conhecer a fundo os agentes causadores das infecções, assim como os modos de propagação e de prevenção das doenças. E ensinaram-no a reagir aos casos de testes reactivos. Nesses momentos de grande stress, sabe como prestar um primeiro apoio psicológico ao utente e encaminhá-lo para o acompanhamento clínico adequado.

Para preencher todos estes conteúdos científicos, o curso contou com um painel alargado de especialistas: infecciologistas, virologistas, microbiologistas, psicólogos. «Foram escolhidas pessoas cuja presença, só por si, é sinal de qualidade, com experiência tanto teórica como do terreno», elogia o farmacêutico. «A Escola é uma instituição credível e apostada na garantia de qualidade do serviço final prestado. Eu diria que está para as farmácias como as farmácias estão para a população: confiamos nela!», comenta.

Em Alcabideche, o Sol apareceu tímido. Hoje não houve nenhum pedido de rastreio, mas a Farmácia Alto da Castelhana tem sido das mais procuradas para o efeito. «Os testes são gratuitos, os resultados são obtidos em 15 minutos, mas o que faz realmente a diferença é o facto de as farmácias terem a confiança da população», conclui Pedro Rosa.


«A Escola continua a ajudar-nos, à distância, a estabelecer pontes com os doentes», agradecem os farmacêuticos da Farmácia Soares ​

Em Sacavém, «é tempo de bruxas, doutora. Se chove e faz sol, elas comem pão mole!». Bernarda Vinagre sorri e acena ao cliente que a cumprimenta. A farmacêutica-adjunta da Farmácia Soares dispensa terapêutica anti-retrovírica (TARV) portadores de VIH-sida, no âmbito de um projecto-piloto dirigido a doentes seguidos no Hospital Curry Cabral, em Lisboa.

A formação que recebeu na EPGSG «foi decisiva», dispara, sem hesitações. «Pessoalmente, a parte que considerei mais importante foi a que respeitou aos aspectos emocionais dos doentes. Os medicamentos são o dia-a-dia de um farmacêutico. Já a vida destas pessoas e os desafios que enfrentam são temas mais distantes para nós», expõe Bernarda Vinagre.

Um dos objectivos do projecto-piloto TARV é que as farmácias comunitárias consigam envolver os doentes no serviço habitual que prestam. «Para isso, é preciso uma componente relacional forte, sendo que estamos a falar de pessoas que são desde logo vítimas dos seus próprios preconceitos, tornando-se, algumas, autênticos cofres».

A EPGSG já capacitou 443 farmacêuticos na dispensa de TARV. O curso inicial foi só o princípio. Este é um caso flagrante de formação verdadeiramente contínua. Os formandos continuam a ser apoiados para prestar o melhor serviço aos doentes. Há encontros mensais, onde são ouvidos testemunhos de doentes e debatidos casos práticos entre colegas. As organizações de doentes e profissionais de saúde têm sido chamadas a participar em conferências. «A Escola, além de nos ter preparado inicialmente para que o piloto arrancasse e funcionasse tecnicamente bem, vem-nos dotando, continuamente, de ferramentas que nos permitem estabelecer pontes com os doentes e isso é algo de valor inestimável», considera Bernarda Vinagre.


Os cursos continuam à distância, através da plataforma de e-learning

Além da formação presencial, todos os cursos da Escola da ANF têm uma componente de estudo à distância, através de uma plataforma de e-learning desenvolvida internamente. Da conjugação das duas vertentes, resulta o modelo apelidado de b-learning. A farmacêutica-adjunta da Farmácia Soares consulta regularmente o manancial de informação disponível na plataforma de e-learning. «Estamos cá para apoiar os doentes em tudo o que é preciso, porque a Escola está sempre a apoiar-nos», resume Bernarda Vinagre.

A EPGSG está sediada no edifício da ANF, no bairro de Santa Catarina, em Lisboa, mas sempre apostou na descentralização da sua actividade. É o caso do Programa FIT, novo modelo formativo para a capacitação das equipas das farmácias em quatro áreas distintas: comportamental, eficiência operacional, tecnológica e técnico-científica. «Temos sessões no Porto, em Lisboa, Castelo Branco, Vilamoura e Coimbra, mas como as farmácias estão distribuídas por todo o país, o que fazemos é ir buscar os inscritos em transferes, que partem, praticamente, de todas as capitais de distrito», descreve Isabel Jacinto.


Os farmacêuticos aprendem tudo sobre administração de vacinas da gripe

Em Portugal, existem 4.600 farmacêuticos capacitados pela EPGSG a administrar a vacina da gripe. A Farmácia do Forte, no Forte da Casa, concelho de Vila Franca de Xira, vacina centenas de doentes por ano desde 2008, quando as farmácias foram autorizadas a prestar esse serviço. A farmacêutica Magda Freitas integrou, por isso, o primeiro lote de formandos. «Era algo inteiramente novo e na comunicação social falava-se muito no risco de choque anafiláctico… Quando cheguei ao curso, começámos logo por aí, ainda que a probabilidade de acontecer seja reduzidíssima», recorda a farmacêutica.
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Magda Freitas integrou o primeiro lote de formandos do curso de vacinação contra a gripe

Nada é deixado ao acaso e qualquer risco é tratado com grande profundidade. Para o desenho do curso de vacinação foram recolhidos contributos de especialistas em emergência médica e em reacções anafilácticas. «Quando afirmamos que o serviço prestado nas farmácias é tecnicamente seguro, garantimos que o é, efectivamente. Os anos que o sector leva de prestação do serviço e os resultados obtidos em Saúde Pública julgo que o atestam», considera a coordenadora.


«Prefiro vacinar-me na farmácia, é mais rápido», afirma Augusto Pereira, que já o poderia fazer de graça no centro de saúde

Todos os anos, mais de meio milhão de portugueses opta por se vacinar contra a gripe nas farmácias. Augusto Pereira, é um deles. O antigo agente principal da PSP, aos 66 anos, já podia ir ao centro de saúde vacinar-se sem custos. «Antes quero vir aqui! É mais rápido e estou muito satisfeito com o serviço», garante.

Indiferente à chuva, de jornal debaixo do braço, veio à Farmácia do Forte só para desejar bom dia. «Gosto deste pessoal. Não há dia que passe sem que lhes faça uma visita». Até aos limites do possível, trata da sua saúde na farmácia. «Tem a ver com confiança», sentencia o antigo polícia. Entretanto, na rua, um arco-íris dá cor ao céu.
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