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27 junho 2015
Texto de Filipe Mendonça Texto de Filipe Mendonça Fotografia de Júlio Lobo Pimentel Fotografia de Júlio Lobo Pimentel

João Almiro: Uma casa grande, como nos sonhos

​​Marina descobriu a Alemanha. Samuel viajou até à Croácia. Outros conheceram Moçambique ou a África do Sul. João Almiro fez mais do que dar-lhes a mão: deu-lhes esperança de que havia mais para conhecer.​

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Bibi, uma menina mongolóide, foi a primeira. «Os pais davam​-lhe água ardente para ela dormir e queimaram-lhe o sistema digestivo. Foram os meus filhos que me pediram, na altura, para ficar com ela. Os médicos diziam que nunca iria falar, nem andar», recorda João Almiro. Quando morreu, aos 43 anos, já «fazia isso tudo». Diz, quem o conhece, que “o doutor” nunca mais foi o mesmo. João Almiro fala da morte de Bibi com a voz ainda presa.

João Almiro criou seis filhos sozinho, no número 1360 da Avenida dr. Afonso Costa. Depois de Bibi se juntar à família, vieram outros pedidos, sempre com resposta. Rapidamente a casa se tornou demasiado pequena. «Desde pequenos que fomos habituados a isto. Ele era pai, mãe e empresário», recorda o filho João. Almiro respondeu a todos os gritos de ajuda. Recolheu crianças vítimas de abusos sexuais, crianças com fome, jovens agarrados à droga, deficientes, alcoólicos, criminosos. Gente sem sorte na vida. «Se salvar cinco em cem, já são cinco que podem ter uma vida digna como aquela que dei aos meus filhos», declara o farmacêutico.

Salvou essas vidas em lares cada vez maiores, como a Casa de Castelões e uma quinta em Moirão. Em 11 de Setembro de 1999, inaugurou o centro de acolhimento da Instituição Convívio Jovem, em Vale de Besteiros, com capacidade para mais de cem crianças e jovens. Seguiram-se seis anos de «sonhos e luta», para que não faltasse o pão de cada dia a mais de cem bocas famintas. Sucessivamente, educou ali centenas de jovens espíritos, em guerra com o passado. Marina conheceu a Alemanha, a Itália e fez um cruzeiro no Mediterrâneo com a Bibi. O Samuel estudou, tirou a carta e conheceu a Croácia. O Jorge também viajou com a Cátia por essa velha Europa, tão nova ao seu olhar. Outros conheceram Moçambique e a África do Sul graças à criatividade e ao esforço de João Almiro. «Dei--lhes mundo. Mostrei-lhes que nada acabava aqui. Abri-lhes os olhos», conta ele, como se tivesse sido ontem. 


Pesadelos com regras​

Na noite de 31 de Agosto de 2005, Almiro fez as malas, pegou nos mais velhos, saiu «porta fora». Desde esse dia, nunca mais voltou ao Convívio Jovem, que tem uma estátua sua à porta. Não suportou mais conviver com as imposições da Segurança Social. «As regras de secretaria e as papeladas só prejudicam os miúdos», declara, revoltado.  

Com uma memória prodigiosa, relata múltiplos casos de incompatibilidade de método e filosofia. Por exemplo, a Segurança Social queria obrigá-lo a «marcar data e hora» para um pai ver duas filhas. «Achei que estava tudo louco. Esse pai vinha lá ver as miúdas quando queria. Eu mandava um carro ir buscá-lo. Deixava o homem comer e dormir lá. Era um regalo vê-lo com elas. Mas um dia a Segurança Social disse-me que eu não podia fazer isso. Disseram que o senhor tinha de marcar data e hora para ver as filhas e que não podia ficar lá a dormir». João Almiro nunca há-de aceitar esta proibição. 

Foi a gota de água. Veio embora, mas não desistiu de dar abrigo às almas mais difíceis, problemáticas e indomáveis. «Os miúdos que vocês puserem na rua, eu fico com eles», disse, como última palavra. E assim nasceu a Casa das Andorinhas, onde há muitos anos Bibi entrou para a família. Nas cadeias, tem oito emigrados. «Vou visitá-los ao fim-de-semana, da Guarda ao Algarve. Um deles, quando me vê, beija-me. Está a ver? Um homem que é capaz de matar, beija-me quando me vê.»


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