Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
9 dezembro 2019
Texto de Maria João Veloso Texto de Maria João Veloso Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«Esse nó dado pelos meus pais ficou até hoje»

Simone de Oliveira conta que «quando conseguimos juntar toda a família, o Natal é uma festa».​

Tags

Como eram os natais na sua família? 
Eram óptimos. Havia os pais, as avós, eu, a minha irmã, as tias. Foi sempre uma data muito amada lá em casa. Penso que esse nó dado pelos meus pais ficou até hoje. Tenho uma filha e um neto no Luxemburgo, outro neto em Berlim. Quando conseguimos juntarmo-nos todos é uma festa. Não acontece com muita frequência mas é na mesma casa de sempre, a casa dos meus pais. De onde saí para casar, a minha irmã saiu para casar... de onde eles saíram para a vida eterna.

Como vai ser o Natal este ano? 
Olhe, sabe Deus e a divina providência. Não sei quem estará. Penso que a minha filha não vem. Mesmo não estando juntos, falamos na noite de Natal uns com os outros. Ao telefone, pelo WhatsApp, uma coisa muito moderna. Aderiu às novas tecnologias? Pois que remédio. Quando o Varela [Silva] partiu, decidi que não queria telemóvel, e o meu filho dizia: «A mãe vive sozinha, anda por todo este mundo,  a única maneira de sabermos onde está é através do telemóvel, por amor de Deus», e é essa a razão que me fez voltar a comprar um telemóvel. A minha vida profissional, aliás, é toda feita por telemóvel. E é uma companhia.

 


Como lida com o facto de ser avó e uma diva? 
Sou a avó que posso ser. Diva não sou, eu chamo-me Simone e canto cantigas. Dessas coisas todas que me chamam não tenho culpa nenhuma, foi o público, foram os meus companheiros de trabalho. No último espectáculo, o Júlio Isidro também disse «E agora vamos ouvir uma diva». Quando ele disse "diva", a minha vontade foi largar o microfone e dizer «agora não entro, vou para casa», é uma coisa que costumo fazer quando tenho muito medo. Nada me foi dado de mão beijada. Foi este país que me pôs em cima, eu não pedi nada. Portanto, agradeço profundamente.

De onde vem a sua vontade de viver? 
Eu gosto imenso de viver mesmo quando tudo é difícil, mesmo quando tudo é mau. Espero ter lucidez suficiente para parar quando fizer ridículos. Ridículos não!  E tenho meia dúzia de pessoas à minha volta, entre elas os meus filhos, suficientemente amigos para dizerem: «Simone, está na hora de parar». De onde me vem essa genica? Eu não lhe sei explicar. Mas não é para me armar em forte. Eu chorei, claro. Tive medo, claro que tive. Não sei estar mal muito tempo.


Simone de Oliveira no Teatro São Luiz, em Lisboa, onde cantou pela primeira vez a «Desfolhada», há 50 anos

Cantou a "Desfolhada" aqui no São Luiz. Venceu aqui o Festival da Canção de 1969. Que memórias tem desse dia? 
Ai, tenho todas. Olhe, tenho uma memória linda, que era a Lurdes Norberto a apresentar o festival. Linda de morrer, com um vestido branco de morrer... e no ensaio eu canto a "Desfolhada" e ela ficou tão espantada com a cantiga que tropeçou nos cabos, 'pum catrapum'... foi pro chão. E de ficar no São Luiz depois do ensaio, sozinha, e ouvir uma pessoa a chorar. Era o nosso realizador, penso que o Oliveira e Costa. Estava agarrado a uma cortina a dizer: «Ai meu Deus, ai meu Deus, como é que isto vai sair logo?». E chorava. E eu fiquei ali: «Mas estás a chorar? Então eu choro também contigo». E ficámos os dois.

Tinha consciência de que aquela frase «quem faz um filho fá-lo por gosto» ia ser... 
Não, não, não... o Zé Carlos [Ary dos Santos] perguntou-me: «É capaz de dizer isto»? Claro que fui, porque eu acho que quem faz um filho... eu fiz os meus por gosto. E não era casada com o pai, o António José, mas eu quis aqueles filhos. Portanto, achava que era uma coisa muito natural dizer aquilo. Foi um rebeubeu, fui insultada nos restaurantes, meteu Guarda Republicana a cavalo, meteu insultos, meteu tudo, tudo, tudo. Os meus filhos foram uns grandes filhos porque tiveram que aguentar esta mãe que lhes coube em sorte, com todos os seus defeitos e todas as intempéries que foi a minha vida. Foram extraordinários até hoje. Agora, é preciso ter muita paciência, muito coração e muito amor para aguentar esta mãe, isso eu também reconheço.

 


Depois disso ficou sem voz. Durante três anos reinventou-se: fez revista, foi jornalista, foi apresentadora. 
Porque me foram telefonando, porque sabiam que eu tinha filhos e tinha de fazer alguma coisa. Cheguei, como se dizia naquela altura, a primeira figura de revista, porque fui ao ABC pedir um cartaz ao Manel Nunes: «Ó Manel, vocês têm aí uns pósteres?». Diz ele: «Temos, temos, olha lá, queres vir para a revista»? «Eu? Ó homem, nunca fiz». «Mas vais ser capaz», respondeu-me. E eu fui.


Recusa ser diva. «Sou Simone e canto cantigas», mas é agradecida pelo reconhecimento público

No Bairro Alto fizeram-lhe uma serenata pelos 80 anos. 
Sim, sim. Foi o restaurante onde eu vou há 33 anos. Fizeram uma grande festa, a polícia deixou fechar a rua, foi uma coisa extraordinária. Foi muito bonito.

Já venceu dois cancros, pôs uma prótese na anca. Como lida com as adversidades?
A anca esquerda também é prótese, o ano passado fiz o joelho e fiz a anca em Dezembro. E sempre que dão aquela injecção na perna para adormecer no quarto eu não durmo. Portanto, chego lá a cima e canto a "Desfolhada". Sempre. «Não tá a dormir»? «Não, senhora enfermeira, não vale a pena porque elas deram-me a injecção» e começo "Corpo de linho, lábios de mosto, meu corpo lindo, meu fogo posto". Pofff! Pronto. Eu nunca pensei que morria, disse sempre ao meu filho «eu já volto». Da última vez, do segundo cancro, foi um bocadinho... chorei quando ia para o bloco. Eram as mesmas enfermeiras do outro cancro há vinte anos. Elas diziam «não chore, Sô Dona Simone». Só disse ao meu filho: «eu já venho». Foi fácil? Que eu chorei, chorei. Que tive medo, tive. Essa coisa de ser muito corajosa, espere lá um bocadinho. Dêem-me o dire​ito de um dia não ser corajosa... Mas depois, lá me levanto, lá me vou pintar, pronto.


Teve dois cancros, foi operada à anca e ao joelho mas acreditou sempre na recuperação

Tem especiais cuidados?​
Todos os possíveis e imaginários. Faço exames de seis em seis meses. Não tenho colesterol, não tenho a tensão alta. Os triglicéridos estão bem. Faço tudo.

E pratica alguma actividade física? 
Deus me livre... Mapling! Já subo tantas escadas, vou a tantos palcos, ando tanto de carro, vou duas vezes por semana ao cabeleireiro, veja lá o que eu trabalho. E tenho de me pintar quase todos os dias.

 


E com a alimentação? 
Como mais peixe do que carne, como muitos vegetais, muita fruta, muitos cereais, iogurtes. Gosto muito de whisky e um cigarro. Quando me perguntam «Quer um chazinho?» eu digo que não. «Quero um café, um cigarro, um copo de whisky com três pedras de gelo, em copo alto». Fica tudo a olhar para mim. Eu não sou a do chazinho, sou a do café. Descafeinado, na verdade. 

Tem a "sua" farmácia? 
Vou há 45 anos à farmácia onde moro, na Praça das Flores, em Lisboa. Sabem as encomendas todas de cor. Vou de dois em dois meses, quando acabam as minhas coisas. Uma coisa para o estômago, o omeprazol.  E o Prozac, desde que o Sô Varela morreu.


Aos 81 anos, Simone de Oliveira mantém uma vida activa. Faz espectáculos, passeia no Bairro Alto, convive com amigos, filhos e netos

O que lhe dá prazer? 
Conversar com os amigos, beber um bom vinho tinto, estar com os meus filhos a conversar, poder ter os meus netos. No outro dia fui jantar – não acontecia há muito tempo – pela primeira vez com os quatro, porque eles não vivem em Portugal. Foi óptimo, óptimo, conversámos sobre tudo. Não sou a avozinha, sou a Simone ou a avó. E falam comigo de tudo.

 


E projectos? 
Vou cantar outra vez ao Casino Estoril, tenho os dois concertos do "Amar Amália", um em Guimarães e outro no Porto, e outras coisas que neste momento não me pergunte, que eu não sei, quem sabe disso tudo é a Fátima. “Vou andar por aí, passear por aí, pra ver se eu encontro o amor que eu perdi”. 

O que lhe falta fazer? 
Continuar a viver. E depois saber partir em paz.

 


*Agradecimentos ao Teatro São Luiz
Galerias relacionadas