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19 março 2018
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Anabela Trindade Fotografia de Anabela Trindade

Da fraqueza nasce a força

​​​Há vida para lá da ostomia.

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​João de Deus Silva ainda arrastava atrás de si a imagem do pai, enfiado na cama, isolado de tudo e todos, corroído pela vergonha e por negar alimentar-se, quando o médico o informou de que a probabilidade de sair da cirurgia ao intestino sem ser ostomizado era mínima.

Recusou ser operado, veementemente. Já tinham passado 25 anos da morte do pai, mas os cheiros, os sons, o isolamento e o sofrimento eram ainda demasiado presentes. Não, ele não se sujeitaria, nem aos seus, ao mesmo. O médico, porém, fez-se parco em rodeios: era a colostomia ou a morte certa, às mãos do cancro colo-rectal. Mas também lhe disse que, com 64 anos, ainda podia viver muito mais. «De certeza que passa por muitas pessoas assim na rua e nem dá por isso».

Não se convenceu, mas escolheu viver. Sentiu, à mesma, que parte de si morria naquele bloco operatório. Levou meses até conseguir voltar a relacionar-se com o seu corpo. Passaram 13 anos e ainda hoje teme afastar-se de casa, não vá o saco de colostomia rebentar ou descolar-se. Vive afastado do convívio social por não tolerar a ideia do olhar dos outros perante um ruído intestinal. Valeu-lhe sempre a melhor amiga: a filha.

Isabel Luz, farmacêutica, directora-técnica da Farmácia Rainha, em Carrazeda de Ansiães, distrito de Bragança, foi sempre a cuidadora do pai. Desde criança. Recorda-se de ser pequenina e fazer com ele os exercícios de reabilitação da fala, depois de um primeiro cancro lhe ter afectado as cordas vocais. Não nega, contudo, que o dia em que pediu à enfermeira do IPO do Porto para a ensinar a lidar com o estoma de João foi um dos momentos mais difíceis da sua vida. «Ela mudou o saco para eu ver, tirei todas as dúvidas e, a seguir, arrancou tudo novamente, apontou-me o material, virou costas e foi-se embora. Ficámos sozinhos e o meu pai começou a chorar. O meu herói, a chorar!».

Isabel fez-se forte. Seguiu todas as instruções, voltou a chamar a enfermeira para verificar se estava tudo bem e saiu a correr. Estava atrasada, mentiu ao pai. «Sentei-me no primeiro banco que encontrei no corredor e ali fiquei, não sei quanto tempo. As lágrimas escorriam. Só me perguntava o que iria ser da vida dele».

Em resultado do cancro colo-rectal, João teve de se submeter a uma cirurgia para remoção de parte do intestino grosso e derivação do restante intestino para o abdómen, onde foi feito um orifício para a libertação das fezes e dos gases. Como a Ciência não foi ainda capaz de reconstruir o músculo circular do recto que controla os movimentos de expulsão, o estoma, ao contrário do ânus, funciona de modo involuntário. Ou seja, «as fezes saem quando têm de sair», explica Isabel. «Tento colocar-me no lugar do meu pai e imaginar como será ter o ânus na barriga, ser incontinente, precisar de ter sempre agarrado a mim um saco para recolher as fezes… Não é fácil».

A Associação Portuguesa de Ostomizados (APO) estima que haja 20 mil pessoas com esta condição no nosso país. Todas terão, pelo menos, uma história para contar. Por causa do pai, Isabel Luz tem centenas. Traz sempre consigo a confidência sofrida da mulher colostomizada que foi expulsa do autocarro porque o saco rebentou, o desespero do utente a quem o centro de saúde se recusou a dar os sacos que usava e a indignação do pai, a quem foi recomendado que comesse menos quando pediu mais sacos. «Sei o que estas pessoas sofrem, muitas vezes sozinhas. Esta é uma oportunidade única para a farmácia prestar um serviço diferenciado».
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