Oradora no 1.º Encontro Abem, a co-fundadora da espanhola Open Value Foundation elogiou o modelo «quase empresarial» da rede solidária do medicamento. Maria Angeles Lopez valoriza sobretudo a aposta na medição do impacto social, a capacidade de mobilizar vários intervenientes e de canalizar a totalidade das doações para os beneficiários. «Não há muitos projectos ou fundações que consigam fazer uma doação tão directa e transparente».
O 1.º Encontro Abem foi promovido pelo Comité de Fundraising da Associação Dignitude e teve lugar em Lisboa, no dia 15 de Novembro.
Revista Saúda - Defende projectos sociais qua vão além da filantropia pura e combinem investimento privado e modelos de negócio. Qual é a sua opinião sobre o modelo do Programa Abem?
Maria Angeles Lopez - O Programa Abem foi concebido de uma maneira muito séria, quase empresarial. Foi pensado como um projecto de longo prazo, preocupa-se com a medição de resultados, usa KPI – Key Performance Indicators. O Abem distingue-se também por canalizar todo o valor angariado para os beneficiários. Cada euro chega a 100% às pessoas! Não há muitos projectos ou fundações que consigam fazer uma doação tão directa e transparente, o que dá aos doadores a segurança de que o seu dinheiro chega integralmente a quem querem que chegue.
O que acha sobre a opção de agregar no mesmo programa farmácias e municípios, organizações sociais e do sector da saúde, doadores privados e empresariais e até embaixadores que dão visibilidade ao programa?
Um projecto que aglutina e une tem maior probabilidade de êxito. O modelo do Abem é muito interessante, justamente por contar com o envolvimento da área de negócios, com as farmácias e a indústria farmacêutica, do sector social, com a Cáritas e outras IPSS – Instituições Públicas de Solidariedade Social, e da administração pública, com os municípios. Vamos ver se conseguimos replicar o Abem em Espanha. Já disse aos responsáveis do programa: a Dignitude é ibérica! Em Espanha, não temos nada parecido, e creio que nem no resto do mundo. Em Espanha, o apoio medicamentoso vem quase todo através da Cáritas e de uma ou outra ONG, que trabalham isoladamente e em locais específicos. A Associação Dignitude ultrapassou essa barreira e agregou várias entidades ao programa que desenvolve. Este modelo multi-organizações vai permitir escalar mais longe, de forma mais rápida. A proposta que faz ao mundo é muito bonita: ajudemos juntos. Sem a preocupação de promover primeiro a minha marca ou o meu logotipo.
Em termos práticos, como poderia o Abem ser replicado em Espanha?
Seria muito fácil, porque a nossa estrutura é muito parecida. Temos uma distribuidora grande de medicamentos, a Cofares, um conselho de farmacêuticos, constituído por estruturas regionais [o equivalente, em Portugal, seria um misto entre a Ordem dos Farmacêuticos e a Associação Nacional das Farmácias], a Cáritas. Este modelo teria ainda a vantagem de incorporar as autarquias, o que seria um milagre em Espanha e creio que noutros países, como Itália. A Dignitude poderia cobrar por ensinar outras empresas e países a montar este modelo, que demorou três ou quatro anos a aprovar e implementar. Seria uma forma de garantir a sua sustentabilidade.
Criar um franchising social?
Poderia ser um franchising social muito disruptivo ou um modelo de consultoria social. São maneiras de começar a gerar retorno sobre um modelo inovador e muito potente.
Em Espanha, a relevância social do programa seria tão grande como em Portugal?
Sim. O Governo comparticipa os medicamentos, mas não a 100%. Paga 80% ou 90%, o que é bastante, mas ainda assim não chega. Depois da crise económica duríssima que afectou Espanha, como Portugal, muita gente recorre ao apoio alimentar da Cáritas. Mas não podem recorrer a programas de medicamentos, porque ninguém pensou nisso. Quem não pode pagar os medicamentos simplesmente não os compra. E deixa de trabalhar, porque não o pode fazer. Por isso sim, faria todo o sentido.
O Abem tem a preocupação de salvaguardar a privacidade dos beneficiários, para garantir a sua dignidade. O que lhe parece como princípio?
Gosto muito do princípio de manter o anonimato dos beneficiários, é precioso! Encanta-me a ideia de que os beneficiários recebam um cartão que lhes permite levantar os medicamentos na farmácia, sem que ninguém saiba se estão ou não a pagá-los. Ainda assim, no futuro, acho que seria bom introduzir no Abem uma vertente de apoio “um a um”.
Acha importante apostar nos doadores individuais?
Sim. Ao longo dos anos aprendi que as doações particulares funcionam melhor quando têm “cara e olhos”. Por exemplo, as minhas filhas têm crianças apadrinhadas na Índia, através da Fundação Vicente Ferrer, e a cada seis meses recebem uma foto delas. As pessoas que doam sentem-se gratificadas por poderem acompanhar a vida da pessoa que ajudam. Neste momento, uma abordagem deste género não cabe no Programa Abem, porque tomou-se a opção de eliminar qualquer tipo de exposição sobre o beneficiário. Mas creio que seria de pensar nisto no futuro. Acho que numa relação “um a um” a preservação da dignidade não se coloca de forma tão intensa. Se eu necessitasse de medicamentos e houvesse um doador disposto a financiar-me ao longo do ano, ou dos anos, creio que não me importaria de conhecê-lo.
No 1.º Encontro Abem falou para uma plateia constituída por grandes doadores e investidores sociais. Como é possível alertá-los para a importância dos projectos sociais e envolvê-los num programa como o Abem?
Através da emoção. Para mim, o universo da doação e do investimento vem da alegria de dar, aquilo a que os anglo-saxónicos chamam joy of giving. A alegria de saber que se está a fazer algo que transcende o quotidiano enche-nos por dentro. Quem faz uma doação também quer algo, essa emoção. Escolas como Harvard e Columbia já demonstraram que dar, doar, investir no social torna as pessoas mais felizes. Nas empresas tem um benefício de team building, reforçando o sentimento de pertença a uma equipa. Foi algo que demorei algum tempo a perceber: todos sentem, como eu, numa pequena parte da sua alma, “Quando dou, recebo?”. Desde então, arrastei o meu marido e a sua empresa e, desde que nos casámos, comprometemo-nos a doar uma percentagem do nosso salário. No início era muito pouco, com o tempo o meu marido criou uma empresa grande e passou a ser mais. Mesmo nos anos em que as coisas não corriam tão bem, doávamos a mesma percentagem. Com prazer, era algo que nos satisfazia. O ano tinha sido horrível, tínhamos perdido dinheiro, mas isto tínhamos continuado a fazer bem.
De acordo com um estudo de impacto feito este ano, por cada euro investido, o Abem gera um retorno social de 7,8 euros. O que lhe parece?
7,8 euros por cada euro investido é um retorno altíssimo. A decisão de medir é inovadora e corajosa. Ninguém o faz. É uma maneira de a Dignitude se diferenciar, sobretudo junto dos investidores. Os doadores procuram sobretudo retorno emocional, mas os investidores estão acostumados a medir o retorno financeiro e valorizaram a existência de um número que traduza o retorno social.
Tem sugestões de como o Programa Abem pode ser desenvolvido no futuro?
Para mim, o êxito do programa passa por dois caminhos. Um deles seria que, depois de vários anos, o Governo apoiasse o programa, potenciando muito o seu impacto social. O outro seria conseguir o apoio de um grande mecenas, disposto a investir dois ou três milhões de euros para suportar a estrutura da Dignitude. Pensando no futuro, o único aspecto do programa onde existe algum risco é o facto de a estrutura da Dignitude estar dependente de apoios financeiros que podem deixar de existir, se mudarem as condições. Seria importante assegurar a estrutura mínima e os ordenados de todos os que trabalham no Abem, para garantir a sustentabilidade futura do programa e que 100% dos fundos angariados continuam a destinar-se aos medicamentos.
Como é possível potenciar o investimento social e o apoio empresarial?
Portugal atravessa um bom momento no que respeita à Responsabilidade Social Empresarial (RSE), é uma tendência que potencia o investimento das empresas em projectos sociais. Por outro lado, o Abem está numa boa situação para usufruir desta tendência, graças à capilaridade das farmácias. Os empregados de uma empresa que apoia a Dignitude vão à farmácia, porque todos vamos à farmácia, e veem aí o programa. Esta capacidade de chegar às pessoas é uma arma muito potente para convencer as empresas a apoiar. As empresas que estão próximas da área farmacêutica e medicamentosa podem utilizar a Dignitude como forma de exercer a sua RSE.