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17 maio 2017
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Alexandre Vaz Fotografia de Alexandre Vaz

«Bastardos nazis» no Museu da Farmácia

​​​​​​​​​​​​​​​O mundo nazi, ignóbil e sem ética, relembrado nas atrocidades cometidas ao serviço da loucura, da ciência e da economia.

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«Nunca é demais relembrar o que foi o holocausto e as atrocidades cometidas pelo nazismo. Nunca é demais relembrar o sofrimento acrescido de mulheres e crianças. Nunca é demais reflectir sobre o que se passou e porque se passou». Com estas palavras, Edite Estrela, presidente da comissão parlamentar de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto, deu início à conferência que ontem teve lugar no Museu da Farmácia, em Lisboa – com segunda edição no dia 20, no Porto – intitulada: “Desumanidade e Justiça: as experiências médicas durante o período nazi 1933-1945”.

Para a deputada, este exercício de memória é essencial hoje em dia, «numa altura em que vimos assistindo à emergência de sinais preocupantes de que a história se pode repetir». Os radicais xenófobos e os fundamentalistas que fomentam ódios são, na opinião de Edite Estrela, mais do que motivos de preocupação: exigem acção. 



Evocou também a impressionante visita ao campo de concentração de Auchwitz e a memória dos montes feitos com cabelos de mulheres assassinadas, depois vendidos para a fabricação de tecidos, bem como os milhares de brinquedos dos filhos que lhes haviam sido arrancados dos braços. «Eram de todas as formas e feitios, e de múltiplas cores… O mal existe. A banalidade do mal é real».

Edite Estrela terminou a intervenção mencionando o diplomata português em França, Aristides Sousa Mendes, ao qual só agora vem sendo feita justiça pelos milhares de pessoas que ajudou a escapar das malhas do regime nazi. «Fazem-nos hoje falta muitos humanistas como ele para salvar os refugiados que chegam à Europa». 


«Os museus são a ponte para a memória»

«Esta foi a conferência mais difícil que alguma vez tive de preparar». Foi assim, de voz embargada, que o director do Museu da Farmácia iniciou a abordagem ao tema “Documentos para evocar e para não esquecer: o Tribunal Médico de Nuremberga – 1947”. O mote são as ordens de captura de figuras de topo da estrutura ligada às experiências médicas desenvolvidas no regime nazi e que agora fazem parte do espólio do Museu.

Falamos dos «bastardos» Herman Schmitz e Fritz Meer, respectivamente presidente e director do consórcio químico I.G. Farben, produtor do pesticida Zyklon B usado nas câmaras de gás; Edmund Freiherr von Thermann, Hjalmar Schnacht e Herman Rocling, financiadores de alguns dos projectos levados a cabo pelo programa T4; Fritz Tyssen, médico; e o mais famoso de todos, Karl Brandt, médico pessoal de Hitler e responsável pelo desenvolvimento, entre outras atrocidades, do programa T4, inscrito na sua missão de «higienização da raça ariana».



«Não podíamos fechar os olhos às ordens de captura destes bastardos, mais tarde julgados pelos aliados, à luz dos direitos da democracia». As sociedades esquecem facilmente – defende João Neto – e pensar que algo semelhante nunca mais poderá acontecer «é esquecer o que é o ser humano. Os museus são a ponte para a memória». 




O castelo dos horrores

Esther Mucznik, presidente da Memoshoá - Associação Memória e Ensino do Holocausto, que realizou esta conferência em parceria com o Museu da Farmácia, veio falar sobre “A experiência de uma formação no Castelo de Hartheim”. 



Este castelo, situado na Áustria, foi um dos seis centros de assassinato de crianças deficientes físicas e mentais inscritos no programa T4, eufemisticamente chamado pelo regime de “eutanásia”. O T4 – abreviatura da morada Tiergartenßtrasse, n.º 4, sede da instituição baptizada pelos nazis de Fundação de Caridade para Cuidados Institucionais tinha a missão de criar uma sociedade pura, para o que era essencial liquidar os elementos que não só a poluíam, como viviam às custas do Estado, segundo considerava o regime. 

Oficialmente, o T4 durou apenas dois anos (1940-1941) e materializa a visão eugénica de Hitler. Aliás, o führer nazi, que tinha por hábito nunca assinar documentos, firmou uma ordem, em Outubro de 1939, pela qual instruía os médicos a incentivar os pais a entregar as crianças que nasciam com deficiências e malformações a instituições que, supostamente, as tratariam. 

70.273 pessoas foram assassinadas ao abrigo do programa. «No castelo, foram cerca de 19 mil». 

Esther descreve o Castelo de Hartheim como «um lugar sinistro». O edifício data do século XII, está inserido no seio da população e tem o nome da família que o construiu. Durante a ocupação, as pessoas viam entrar autocarros cheios de crianças, das quais nunca mais havia sinal. «Tinha a funcionar vários fornos crematórios». 



Porém, em Maio de 1945, quando os norte-americanos chegaram a Hartheim, todos os vestígios do que tinha sido e das suas vítimas haviam sido apagados. No local, encontraram em funcionamento um lar para crianças. A história daquele castelo ficou adormecida praticamente até ao ano 2000, altura em que um grupo de jovens se organizou e constituiu uma associação para a recuperar do esquecimento. «Isto mostra também como, durante muito tempo, foi difícil para as populações olhar e aceitar o passado». 

Para Esther Mucznik, o castelo mostra dois factos muito importantes: «Primeiro, a importância da negação da diferença, ou seja, os riscos incomensuráveis que encerra. Segundo, que também na memória há uma cronologia que obedece a uma hierarquia. A seguir à guerra, os resistentes eram os heróis, os celebrados e lembrados. Depois foram os judeus, a seguir os ciganos e os homossexuais. Os deficientes são os últimos dos últimos. Não têm porta-vozes». 


Os ateus da Lei

A juíza desembargadora Margarida Blasco veio falar sobre “A Operação T4 nos processos de Nuremberga”, revelando que, em 1945, quando os acusados foram encontrados, a dúvida que assaltou os aliados foi o que fazer com estes homens. Conforme contou, os julgamentos em Nuremberga obedeceram a um critério logístico, mas também simbólico. Aquele tribunal era um dos poucos edifícios que não tinham sido arrasados durante a guerra, mas também tinha sido ali, naquela cidade, que alguns dos mais importantes comícios do regime haviam sido realizados e tinha sido aprovada a lei que privou os judeus de todos os seus direitos. «Quis-se mostrar a estes homens que o regime nazi e a democracia eram coisas muito diferentes. Quis-se dar-lhes o direito a um julgamento e quis-se fazê-lo num dos bastiões da doutrina de Hitler». 

Os julgamentos ocorreram em duas partes. Primeiro foram julgados 24 réus indiciados pelo planeamento e extermínio de milhares de pessoas. 22 foram condenados. 



Depois foram julgados outros 199 indivíduos. Eram professores, juízes, polícias e médicos. Em comum tinham que, nos actos praticados, não haviam cometido nenhum crime, já que se haviam limitado a cumprir a sua obrigação: tinham autorização escrita e legal para os mesmos. «Os nazis eram ateus da Lei». 

Entre a classe médica, foram julgados 23 médicos e administradores hospitalares, ao longo de 140 dias de audiências, com 85 testemunhas. 16 réus foram dados como culpados, sete foram sentenciados à morte.

O T4 foi uma das atrocidades em julgamento. 

Antes dos nazis chegarem ao poder, o movimento de eugenia já era muito activo na Alemanha. Quando o regime se instalou, muitos eugenistas acabaram nomeados para cargos importantes no Ministério da Saúde.

Margarida Blasco fala em dois momentos legislativos importantes no contexto eugénico nazi. «Em Junho de 1933, foi publicada a lei para a prevenção de filhos de pais com doenças hereditárias, decretando a esterilização obrigatória de pessoas com deficiência». 



Em Nuremberga, os réus sempre insistiram na liberdade de escolha da população visada: ou eram esterilizados ou deportados para um campo de concentração. 360 mil pessoas foram esterilizadas ao abrigo desta lei.

Outubro de 1939 marca outro momento importante, com a publicação da lei da eutanásia. Foram criados tribunais especiais, compostos por médicos e juízes, para determinar em cada um dos casos se o doente era clinicamente incurável. Havia recurso às decisões, mas os advogados de defesa não tinham o direito de falar em tribunal. 

O consentimento dos tutores rapidamente desapareceu como medida necessária à aplicação da “eutanásia”: todos os menores de três anos de idade deviam morrer. «As mortes eram registadas como pneumonia e as amostras de cérebros eram usadas para investigação clínica, o que pareceu atenuar a consciência dos julgados em Nuremberga: as crianças não tinham morrido em vão». 

Mais tarde, a medida estendeu-se aos adolescentes. Aos pais, quando se negavam a entregar as crianças, era-lhes retirada a custódia de todos os outros filhos.

Este nunca foi um programa consensual, mesmo entre as fileiras nazis, e mereceu muitos protestos, levando ao seu encerramento oficial em Outubro de 1941. Os médicos foram deslocados para campos de concentração, onde continuaram a matar até 1945, alargando o programa a novas faixas etárias e com diferentes métodos. Primeiro fármacos, depois gás monóxido de carbono. Foram assassinadas mais de 275 mil pessoas.

Os julgamentos dos médicos e investigadores clínicos em Nuremberga deram origem ao chamado Código de Nuremberga, sobre os aspectos éticos envolvidos na investigação em seres humanos. Medidas como o consentimento informado obrigatório, a realização de testes prévios em animais e a proibição do sofrimento emanam daqui. 


Ciência como fundamento doutrinário

Cláudia Ninhos, investigadora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, abordou os bolseiros portugueses do Estado Novo na Alemanha nazi. 



Contou que o enorme desenvolvimento registado nos laboratórios genéticos na Alemanha encontrou no regime nazi uma política ávida de colocar a teoria em prática. «A relação entre os dois mundos foi muito próxima e sinérgica: os investigadores fundamentavam a política do regime e o mesmo regime recompensava os investigadores com financiamentos generosos».

A evolução científica alemã é reconhecida no Portugal de Salazar e deixa alguns cientistas portugueses muito entusiasmados. Entre eles, Eusébio Tamagnini e Henrique Baraona Fernandes, que viriam a ser bolseiros na Alemanha nazi, ao abrigo de um acordo de intercâmbio académico, de 1934/35. 

A Genética e a Antropologia eram as áreas em que a influência alemã mais se fazia sentir, sendo que, em Portugal, «o esforço era feito para apoiar o colonialismo e atestar a superioridade do povo português». 


A ética utilitarista

A palestra de Rui Nunes, no dia 20, no Porto, sobre “Ética, Integridade e Investigação”, encerrou a conferência bipartida entre as duas cidades. O professor de Bioética e Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto veio mostrar o quão próximos e envolvidos estamos ainda nesta realidade dantesca. 

O professor começou por notar que o século XX impactou a ética médica, sempre igual até então nos quatro pontos do planeta. A culpa é da evolução científica e tecnológica na Biomedicina, defendeu. «A ética de um médico perante o doente é uma, e é outra quando esse mesmo médico veste a bata de investigador», disse, acrescentado que «A ética da Ciência é utilitarista, dita que os fins justificam os meios», lembrou Rui Nunes, sublinhando que o cientista não está preocupado com o caso concreto que tem diante de si, seja pessoa ou animal de experiência, e sim «com os resultados a curto, médio ou longo prazo para a sociedade transversalmente considerada e para as gerações vindouras». 

Para Rui Nunes, o que se viveu no regime nazi não foi um caso pontual, nem tão pouco isolado no espaço e tempo: «A falta de integridade na Ciência é um problema absolutamente avassalador». 

A inexistência de limites não é só uma questão da guerra versus a paz, mas também de mercado. «Alguns portugueses, em Portugal, estabeleceram contratos com multinacionais norte-americanas para se criopreservarem, ficarem em modo de suspensão de vida. Bastam 150 mil dólares!», revelou, para concluir de seguida que, «muito curiosamente», os resultados científicos mais apurados da suspensão criogénica de ovócitos, espermatozoides, células, tecidos, órgãos, e até pessoas, vivas e mortas, vêm dos campos de concentração nazis. «Ainda hoje se pergunta se, ao utilizarmos esses dados, não estaremos a ser cúmplices do que lá se passou. Qualquer um de nós lhes pode aceder, porque continua a não haver, em nenhum país europeu, Portugal incluído, qualquer regulamentação sobre a matéria».

Rui Nunes falou da nova genética, «de que, de certo modo, os nazis foram percussores», e através da qual intervimos, directamente, no nosso património genético. «Já não se questiona se isso é possível, mas se é desejável, quais são os contornos éticos e qual deve ser a lei a regular este tipo de práticas, porque a técnica permite tudo. O código de Nuremberga dita precisamente isto, a questão é se o estamos a cumprir». 

O professor tem dúvidas. «Na última versão da Declaração de Helsínquia assistimos a algum retrocesso, com a possibilidade de se realizarem ensaios clínicos de medicamentos não contra o standard, mas contra placebo e contra nenhum tratamento». 

Como travar isto? «Temos de reforçar os papéis dos comités de ética. Temos de os dotar de mais competências, maior independência e maior capacidade». 

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