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3 fevereiro 2022
Texto de Maria Jorge Costa Texto de Maria Jorge Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de André Torrinha Vídeo de André Torrinha

«Através da comida consigo chegar aos outros»

​​​Foi a trabalhar como voluntário com sem-abrigo que o cozinheiro percebeu a sua vocação.

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Como é que se muda da gestão para a cozinha?
A meio do curso de Gestão de Marketing percebi que queria estar ligado ao mundo da cozinha. O bichinho já lá estava desde pequenino. Cozinhava muito, até para conquistar os meus seis irmãos mais velhos e os meus pais. Ajudava sempre a minha mãe na cozinha, era a maneira de ganhar pontos. Aos 18, 19 anos trabalhei como voluntário na Comunidade Vida e Paz e foi aí que percebi o lado fantástico da comida como forma de nos relacionarmos mais profundamente. O facto de estarmos à frente de uma mesa, a olhar olhos nos olhos uns dos outros, mexeu muito comigo.

Mas há 20 anos não havia o glamour da cozinha, era uma coisa completamente diferente. Ninguém sabia o nome dos cozinheiros. Hoje em dia, vamos ao Boteco porque sabemos que é do Kiko, vamos ao Bairro (Bairro do Avillez) do José Avillez, vamos ao 100 Maneiras do Ljubomir.


No restaurante O Boteco a comida é de inspiração brasileira, país onde nasceu

A cozinha é uma forma de afeto?
A cozinha tem um lado imediato. Agarro numa batata e num bocado de manteiga, queimo a manteiga, asso a batata, e de repente faço um puré com manteiga noisette e proporciono um prazer inesperado a alguém. Para quem não se imagina em frente ao computador um dia inteiro, as características de gerir um restaurante são fascinantes. O stress, a adrenalina, organização, competência, preparação, os fornecedores, o facto de não ser tudo igual.


«A Comunidade Vida e Paz usa o leite e a sanduíche para chegar às pessoas e tentar resgatá-las da rua»

Os sem-abrigo e a Comunidade Vida e Paz foram muito importantes porque aos 18, 19 anos é uma idade em que andamos um bocadinho perdidos. Quando uma pessoa não tem claro se quer seguir Agronomia, Medicina ou Advocacia, a Gestão dá um bocadinho para tudo. O que me seduziu no mundo da cozinha, e a experiência com os sem-abrigo teve esse impacto, foi perceber que através da comida eu consigo chegar aos outros.

A Comunidade Vida e Paz faz muito mais do que distribuir um copo de leite quente e uma sanduíche à noite. Usa o copo de leite e a sanduíche para chegar às pessoas e tentar resgatá-las da rua.

Sempre trabalhei como voluntário, com idosos, em prisões, em pequenas missões de dois meses por ano em Cabo Verde. Quando me casei, fui com os Leigos para o Desenvolvimento para um projeto em Moçambique, onde estive na cidade da Beira a trabalhar como missionário. A comida tem um lado profundo de capacitação entre as pessoas. Isso seduz-me muito.


Kiko Martins e os sócios decidiram fazer coisas diferentes «não fazemos copy/paste»

Não quer uma vida monótona, por isso não lhe chega um restaurante?
Não, não quero uma vida monótona, não quero uma vida arrumadinha. 

Eu e os meus sócios gostamos de andar para a frente, criar valor, acrescentar valor. Para nós, nunca foi uma questão de abrir restaurantes por abrir. Abrimos O Talho quando cheguei de uma volta ao mundo. Não era um restaurante normal, era um talho que tinha um restaurante. Tivemos convites para abrir outros O Talho no Algarve, Cascais, Porto, fora de Portugal... 

E eu sempre disse não, vamos fazer coisas diferentes. Lembro-me ainda de uma reunião com os meus sócios, para aí há nove anos, em que escrevemos os mandamentos pelos quais nos íamos guiar nos cinco anos seguintes. E um deles era fazer projetos diferentes. Não vamos fazer copy/paste, não vamos copiar. Erramos muitas vezes, mas reconhecemos o erro. “A Cevicheria” foi um restaurante muito disruptivo na altura. Abrimos há sete anos no Príncipe Real, em Lisboa. Um restaurante sem reservas, a 40 ou 50 euros por pessoa, foi um risco. Hoje é um case study. Em nenhum business plan no mundo se põe um restaurante destes a rodar as mesas quase dez vezes por dia. É impensável. “A Cevicheria” tem esse élã. É claro que já tivemos de fechar alguns pelo caminho, principalmente devido à pandemia. Foi uma tareia grande, mas garantidamente iremos abrir outros.


«Sou um pai muito presente e na pandemia fui ainda mais»

Tem quatro filhos, consegue ter tempo para eles?
Consigo, consigo. Acho que sou um pai muito presente e nesta pandemia tornei-me ainda mais. Tento manter esse equilíbrio de evitar trabalhar aos fins de semana. É claro que é difícil, mas tento não olhar para o telefone.

 


Como tem pouca atividade, meteu-se a correr.
A corrida é uma coisa muito boa na minha vida. Sempre gostei muito de desportos e nunca gostei de corrida, quero deixar isto muito claro. Desde miúdo que faço desporto com adrenalina: skate, surf, bodyboard, downhill, e odiava corrida. Não gosto de correr ainda hoje, apesar de parecer um bocado estranho porque faço tantos quilómetros por semana. Como sou um bocadinho hiperativo e sei que preciso de gastar energias, libertar o stress acumulado sem perigo, a corrida é fantástica porque posso fazer sozinho às cinco da manhã ou à uma da manhã ou a meio da tarde.

Como surgiu o convite para participar no programa de cozinha de Gordon Ramsay [no canal National Geographic]?
Recebi um convite do National Geographic para o receber e ser o anfitrião, apoiar e depois cozinhar contra ele na “batalha final”. É daquelas coisas boas que nos acontecem na vida. A meio da pandemia teve um sabor ainda mais especial. 

Ele é insuportável, como parece no programa “Hell’s Kitchen”?
Não é nada insuportável, achei-o um castiço e uma pessoa brilhante. É um excelente comunicador. Cozinhámos juntos para aí uma hora e meia, um contra o outro, e foi ótimo trabalhar... nem foi um trabalho, foi uma diversão.

Qual é a sua dieta preferida?
Eu tenho um grande problema, gosto de comer muito de tudo, gosto de beber vinho. Sou mesmo bom garfo. Pode ser apenas um frango frito, mas bem feito, como pode ser uma refeição num restaurante Michelin, como pode ser um champanhe fantástico, ou um vinho verde de três euros. Desde que as coisas sejam bem feitas, com amor e carinho na confeção, fico seduzido. Prato preferido? Talvez a lasanha, porque é um prato que a minha mãe faz. E a lasanha da minha mãe tem um sabor único, aquela coisa de mãe.​