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23 janeiro 2016
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Carla Bessa Fotografia de Carla Bessa

António Arnaut: «O SNS foi uma teimosia minha»

​​​​​​​​​​Entre 23 de Janeiro e 29 de Agosto de 1978, PS e CDS reuniram-se à mesa do Conselho de Ministros. A criação do Serviço Nacional de Saúde deu cabo do Governo. ​

Revista Farmácia Portuguesa – Como é que o senhor inventou o Serviço Nacional de Saúde em sete meses como ministro?
António Arnaut (AA) – É preciso conhecer a realidade do país e é preciso querer mudá-la. Na minha aldeia morriam pessoas porque não tinham dinheiro para procurar um médico. Conhecendo a realidade do país, através do espelho social que era a minha aldeia, tendo eu sensibilidade e desde sempre sido um rebelde contra as injustiças sociais, tinha de fazer o que pudesse. Mas não «inventei» o SNS. O SNS era uma grande e antiga aspiração do povo português. Podemos dizer, para não recuarmos mais, que começou em 1961, com o Movimento das Carreiras Médicas, pedra angular de um serviço público de saúde. Depois do 25 de Abril, ficou previsto no artigo 64º da Constituição. Eu fui deputado constituinte e tinha a sensibilidade social de querer ajudar a mudar o Mundo, porque sou um poeta.

RFP – Sentiu que era tudo ou nada?
AA – O Mário Soares convidou-me primeiro para ministro da Justiça, estive três dias a fazer o programa de Justiça, já tinha até gizado a criação de um Serviço Nacional de Justiça. Com a evolução do processo de formação do Governo, acabou por me convidar para uma pasta como aquela. Eu ainda lhe disse: «Saúde? Mas eu disso não sei». _ «Ora, tu resolves o problema, convidas um bom secretário de Estado», foi o único conselho que ele me deu. E eu convidei um bom secretário de Estado da Saúde, que foi o dr. Mário Mendes, médico e professor aqui de Coimbra, meu amigo e camarada, que tinha estado no Movimento das Carreiras Médicas. Para me convencer, o Mário Soares até apelou à minha consciência e aos meus princípios socialistas. É evidente que, sendo nomeado para uma pasta que até se chamava Ministério dos Assuntos Sociais, inscrevi no programa do Governo o Serviço Nacional de Saúde.

RFP – Mas os programas normalmente não se cumprem e há sempre uma desculpa.
AA – De facto, em termos normais, essa promessa não teria sido cumprida. O CDS estava connosco no Governo e bateu palmas quando, no debate da apresentação do programa do Governo, eu falei na criação do SNS. Mas o CDS - e porventura outras pessoas - julgavam que aquilo era só para ornamentar o programa, que era uma coisa bonita. Quando, um mês depois, apresentei o anteprojecto numa conferência de imprensa, a promessa tornou-se uma coisa concreta. E aí foi o Carmo e a Trindade, tremeu o Palácio de S. Bento e tremeu a sede do CDS no Largo do Caldas. 

RFP – Teve de vencer muitas resistências?
AA – Quando eles viram que o António Arnaut não era um político, no sentido corrente da palavra, era um rapaz que vinha de uma aldeia, conhecia o sofrimento do seu povo e estava apostado a atenuá-lo, então começaram a ter medo. E começaram, realmente, com intrigas. Dentro do meu próprio partido começou-se a recear que o António Arnaut fosse –como foi! – uma causa de perturbação da boa harmonia, da paz podre da coligação e do poder.

RFP – Imagino que houve muitas pressões…
AA – Houve, de muitos sectores conservadores e, na altura, especialmente da Ordem dos Médicos, que era presidida pelo Gentil Martins. O CDS disse que não podia ser, que era uma reforma demasiado socialista, que não aguentava aquela reforma.
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RFP – O senhor sentiu que tinha de se impor politicamente?
AA – Não só senti como disse ao Mário Soares: «Isto é um ponto de honra do Programa do Governo». Ele, a certa altura, disse-me: «Arnaut, tem calma, vai com calma, porque poderá haver problemas». E eu disse ao primeiro-ministro, isto é, disse ao meu amigo Mário Soares: «Mário, o SNS é um ponto de honra do programa do Governo e do Partido Socialista. E isso é contigo. Mas também meu, comigo próprio. A mim ensinaram-me a respeitar a palavra. A palavra dada é a palavra honrada. Eu não mudo uma linha. O programa do Governo ou é para cumprir ou eu vou-me embora».

RFP – Sentiu resistências no seu próprio partido?
AA – O Partido Socialista nunca teve dúvidas. A pedido do Mário Soares, tive uma reunião com o Freitas do Amaral, aliás muito cordata. Nas suas memórias políticas, ele diz que ficou com muito boa impressão minha, mas que eu estava intransigente. Ele queria que eu pusesse o SNS na gaveta, mas eu não pus na gaveta. E por essa razão, em Julho, o CDS abriu uma crise e retirou do Governo os três ministros que lá tinha (Rui Pena, Sá Machado e Basílio Horta) e que, aliás, apoiavam o SNS.

RFP – Eles apoiavam?
AA – Apoiavam, apoiavam! O Freitas do Amaral até me disse na altura: «Oh, Arnaut, eu concordo consigo, mas o CDS acha que é uma reforma muito socialista, tenho sectores que não a admitem». E eu respondi: «Também eu tenho, alguns sectores. Mas isto não é uma reforma socialista. Se você quer dar-lhe um nome, então ponha socialista-cristã». Eu disse isso com sinceridade. A doutrina social da Igreja não se afasta do socialismo democrático.

RFP – O anteprojecto subiu a Conselho de Ministros. 
AA – E foi aprovado, numa primeira leitura, com algumas sugestões que eles me fizeram. O ministro das Finanças, por exemplo, levantou o problema das despesas. Todos os ministros das Finanças são assim, preocupam-se com os números e com estatísticas, não se preocupam com as pessoas. Eu tomei nota das sugestões de todos e o anteprojecto ficou de voltar a Conselho de Ministros para ser definitivamente aprovado. Mas antes dessa segunda reunião o CDS abriu a crise, precisamente para impedir a aprovação do SNS em Conselho de Ministros.

RFP – É quando o senhor faz um despacho.
AA – Fiz um despacho, o Serviço Nacional de Saúde foi criado por despacho! E esteve em vigor muitos anos, enquanto a lei não foi regulamentada. O Governo caiu. Eu era deputado. Regressei à Assembleia da República e apresentei o mesmo diploma como projecto de lei do Partido Socialista, assinado pelo Mário Soares, pelo Salgado Zenha em nome do Grupo Parlamentar…

RFP – O Governo caiu em Agosto e a Lei do SNS é de 15 de Setembro.
AA – Foi logo a seguir. Eu não desistia. Na conversa com o Freitas do Amaral usei isso como último argumento: «Eu levo isto à Assembleia da República e é aprovado porque o projecto tem maioria». Incrédulo, ele perguntou-me, «tem maioria, como?». «Porque o PCP vota a favor!».

RFP – Surpresa!
AA – Nas suas memórias, o Freitas do Amaral diz qualquer coisa como: «Foi como se me tivessem lançado sobre a cabeça um balde água fria». 

RFP – Mas ficaram amigos.
AA – Ele faz-me as melhores referências nesse livro, tenho muita estima por ele, somos amigos. O SNS foi aprovado com os votos do PS, PCP e do deputado da UDP. O PSD, o CDS e os deputados independentes da ASDI votaram contra. O Sakellarides disse há tempos uma coisa muito bonita, que o SNS se deve a uma «teimosia» do António Arnaut. Foi graças a essa teimosia, ao respeito pela palavra dada, ao sentido do dever.