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31 março 2022
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de André Torrinha Vídeo de André Torrinha

Água abençoada

​​​​​​Vinte anos de uma albufeira que veio contrariar o próprio nome: Alqueva, "terra deserta".

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Onde antes havia um mar de verde, feito de oliveiras, sobreiros e medronheiros, hoje há um imenso lago azul. Mil quilómetros de margens recortadas que tocam Moura, Mourão, Reguengos de Monsaraz, Portel e Alandroal. Da água que há 20 anos inundou a terra, emergem mais de 400 ilhas, testemunhas dos cerros da antiga paisagem. Submersa ficou uma aldeia, a Luz, e o castelo de Lousa, um templo romano dos séculos III a I a. C., protegido por um sarcófago de sacas de terra, pronto para ser recuperado quando a barragem for encerrada, o que poderá acontecer dentro de um século.

 
Paisagem sobre o casario de Moura, a partir do castelo

O maior lago artificial da Europa alterou a paisagem, minimizou a ameaça da seca e irrigou sonhos de progresso. «Ainda há muita coisa a fazer e construir, na agricultura e no turismo. A nossa albufeira tem de ser mais explorada», diz a farmacêutica de Moura, Nídia Lampreia, traduzindo o sentimento de muitos habitantes. Humberto Nixon é um deles. Sempre viu o Alqueva como «uma enorme massa de água com imenso potencial turístico», das praias fluviais aos desportos náuticos e à pesca. A albufeira, rica em achigã, lucioperca, solha e barbo, é procurada para concursos mundiais de pesca. Organizam-se regatas SB20, há quem pratique canoagem e windsurf, e os alunos do 1.º Ciclo de Moura têm ali aulas de vela.


O antigo professor Humberto Nixon apostou no turismo. Hoje, a Alquevatours dispõe de três barcos com capacidade para 57 pessoas

Em 2008, Humberto e a mulher, ele professor, ela educadora de infância, decidiram mudar de vida e organizar passeios de barco na albufeira. Começaram com um semirrígido de seis lugares, hoje a Alquevatours dispõe de três barcos com capacidade total para 57 pessoas. Enquanto conduz a embarcação, Humberto aponta os montes transformados em turismo rural, as colmeias e os gansos do Egito que se avistam na margem. Desfia estórias dos antigos malteses, salteadores que aterrorizavam as populações, e conta como se vivia do que a terra dava, dos espargos aos cogumelos, do pastoreio à caça. À passagem pela Praia Fluvial de Alqueva, onde se avista o chamado bar da praia, o antigo professor elogia a resistência de quem mantém abertas as portas todo o ano. «É preciso coragem», admite. Também ele tem contrariado dificuldades e anseia pelas vantagens que a nova Estação Náutica de Moura-Alqueva, a construir junto à coroa da barragem, trará ao turismo.

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A nova aldeia da Luz foi construída de raiz para albergar os habitantes da antiga aldeia submersa pela albufeira do Alqueva

A 13 quilómetros de Mourão, a nova aldeia da Luz, construída de raiz para albergar os habitantes órfãos de casa, ilustra a utopia de perpetuar o passado. A sensação à chegada é de estranheza. Não só porque não se sente a passagem do tempo nas paredes, ou a arquitetura tradicional coexiste com edifícios modernos, como a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, no largo principal. É, sobretudo, o exagero de espaço: as ruas parecem alamedas, as soleiras das portas distam vários metros. «Para duas vizinhas conversarem à porta têm de puxar uma cadeira», diz Sara Correia, que aos 18 anos se viu forçada a mudar para aqui, acompanhada da «revolta própria da idade». A presidente da Junta de Freguesia da Luz acredita que a sua voz traduz o sentimento da população. Não questiona as vantagens que a barragem trouxe à região e ao país, mas lamenta «o sacrifício da Luz». As casas novas não compensaram o «prejuízo emocional», garante. «Perdeu-se a alma e as referências, o sentido de comunidade que sempre existiu, forte, na antiga aldeia». Sobrou a memória e uma paisagem fantástica sobre a albufeira, onde «cada pôr do sol é único».

A farmacêutica Nídia Lampreia no Museu da Luz, que preserva a memória da aldeia submersa, com testemunhos de saberes tradicionais

A escassos metros da água fica a Igreja de Nossa Senhora da Luz, o único edifício verdadeiramente fiel ao original. Ao lado, o cemitério para onde foram trasladados os corpos, num dos momentos mais dolorosos para a população. O Museu da Luz, propriedade da Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA), preserva a memória com objetos doados e testemunhos de saberes tradicionais, como a matança do porco ou a construção em taipa. As fotografias reportam o desmantelamento e a demolição da aldeia, aconselhada por psicólogos, «pois facilitaria o luto», explica o técnico Dimas Ferro.


O projeto Dark Sky Alqueva tornou possível observar estrelas, planetas e galáxias a partir de uma antiga escola primária na aldeia da Cumeada (© Miguel Claro | Dark Sky® Alqueva)​

Quando chega a noite, o Alentejo oferece um céu estreladíssimo, graças à fraca poluição luminosa. «Sítios como este escasseiam no mundo», garante Nuno Santos, astrónomo no Dark Sky Alqueva, o projeto que há 15 anos tornou possível observar estrelas, planetas e galáxias numa antiga escola primária na aldeia da Cumeada, perto de Reguengos de Monsaraz. Para os mais aventureiros, há visitas guiadas noturnas a bordo de uma canoa.


Herdade Monte Santos, onde além do Museu do Medronho há safáris para observar animais

Outra experiência muito apreciada pelas crianças é o safári de jipe, para observar veados, gamos, muflões, arruís e javalis na Herdade Monte Santos, que se estende por quase 500 hectares. Os burritos vêm comer milho à mão, duas cabras e um muflão param e olham o jipe, na esperança de alimento. Bolota, a cadela Jack Russell que Fátima Carrasco, a condutora, achou por bem afastar dos javalis, por segurança, segue alegremente empoleirada no banco da frente. Na propriedade é ainda possível visitar o Museu do Medronho e a destilaria onde os proprietários, Samuel e Helena Pacheco, produzem aguardente, gin, melosa e cerveja artesanal, tudo a partir do medronho.


Castelo de Moura, importante praça de armas e berço da primeira fábrica da Água Castello, em 1899

Nas bermas das estradas desfila olival e mais olival, vinhas, uma ou outra plantação de amendoeiras ou de painéis fotovoltaicos, das poucas indústrias da região. Por vezes cheira a esteva, quase sempre a azeitona. À chegada a Moura, cujo nome é uma homenagem à moura Salúquia, que, conta a lenda, se lançou da torre mais alta do castelo ao perceber ter sido enganada pelos cristãos, abrindo-lhes os portões da fortaleza, muito há para ver. No castelo, residência da população até à reconquista de 1232, torres de diferentes épocas provam o peso desta praça de armas na defesa da fronteira. Foi também no castelo que, em 1899, se instalou a primeira fábrica da Água Castello, aproveitando uma nascente do sistema aquífero Moura-Ficalho. «Não deixa de ser curioso, numa zona do Interior alentejano», ri a historiadora Marisa Bacalhau. A água é tanta que ainda funcionam as Termas de Moura, com as tinas originais do século XIX. 


Museu do Azeite, no antigo Lagar de Varas do Fojo, em Moura

À uma da tarde, soa a sirene dos bombeiros, o comércio fecha e toda a gente vai almoçar. Em Moura, come-se bem. «Sopas de pão, chamadas açordas, com peixe do rio; migas com carne de porco preto; queijo de ovelha de Serpa, feito em Moura», enumera a farmacêutica. E depois há o vinho, inclusive da talha, e o azeite, central na identidade desta cidade raiana. “És mais fino que o azeite de Moura”, diz o povo. Junto à fronteira, onde a cobiça dos vizinhos ameaçava, o olivedo pedia pouco, em cuidados e mão-de-obra, e dava muito. «Uma oliveira era tudo: luz, aquecimento, azeite, fruto, sombra», nota a historiadora. No antigo Lagar de Varas do Fojo percebe-se como funcionava a extração tradicional, por sistema de vara e peso, um engenho romano também usado para o vinho. O lagar comunitário, que é hoje museu, terá funcionado entre 1810 e meados do século XX. «Aqui tudo se aproveitava. A massa que resultava das várias extrações era alimento para os porcos, as borras do azeite serviam para hidratar calçado, carros de burros ou fazer sabão». Tudo tão diferente do olival intensivo, «fruto do progresso e uma incógnita para o futuro ambiental destas terras. Em tudo tem de haver conta, peso e medida, mas, sobretudo, bom senso», alerta Marisa Bacalhau.


Feijoada de grão, um dos muitos petiscos gastronómicos

À passagem pela aldeia de Póvoa de São Miguel, Nídia comenta: «Aqui, a escola só não fechou graças às crianças ciganas». A farmacêutica deixou Moura apenas para fazer a universidade em Lisboa. Regressou pela família, a tranquilidade, a vontade de ajudar a população envelhecida. Foi a única, entre primos e colegas do secundário. Vinte anos após o encerramento das comportas, a barragem de Alqueva mudou a paisagem, mas não estancou a desertificação humana. 

 



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