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25 fevereiro 2020
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Pedro Loureiro e Miguel Ribeiro Fernandes Fotografia de Pedro Loureiro e Miguel Ribeiro Fernandes

A vida pública de uma planta

​​​O desafio é converter uma planta num produto farmacêutico padronizado.​

​Na estufa

Há um lugar onde tudo acontece: a estufa, uma gigante instalação de vidro onde o perfume da canábis é intenso. A Tilray, multinacional de origem canadiana, instalou-se em Cantanhede no início de 2017, altura em que começou a construir o seu complexo de cinco hectares de área de cultivo. Em Fevereiro de 2019, fez uma primeira colheita.

«O processo de fabrico e de obtenção de precisão nos produtos de canábis medicinal é muito mais complexo do que em qualquer outro produto farmacêutico», comenta Sascha Mielcarek, director-geral da empresa para a Europa, como quem pensa em voz alta, de olhos postos nas fileiras verdes que se estendem para lá da vidraça.

O desafio é converter uma planta viva num produto farmacêutico padronizado. «E conseguimos! Obtemos um produto final com características muito precisas», sublinha, apontando para as plantas, em diferentes fases de desenvolvimento, distribuídas por diferentes compartimentos.


A Tilray tem cinco hectares de cultivo de canábis em Tondela

«Tudo começa com a planta-mãe, que constitui o nosso stock de plantas», conta Cristina Almeida, gestora de controlo da Tilray. As “mães” são plantas mantidas em fase vegetativa até um ano. Nunca entram em floração e é a partir delas que se clonam, pela retirada de estacas, todas as outras, produtoras de flor. «Significa que não usamos sementes e que todas as plantas são femininas», explica a farmacêutica.

A cultura é biológica. Não há pesticidas. O controlo de pestes é feito com recurso a produtos fitofarmacêuticos, aprovados pela Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária. Todos os passos são monitorizados por processos standard. A nutrição da planta termina antes da colheita, «para manter a qualidade da flor». Na colheita, separa-se as flores do resto da planta. A avaliação de qualidade tem de ser novamente positiva, como nos diversos momentos de controlo anteriores, certificados por laboratórios independentes.

Na fábrica anexa à estufa são preparados diferentes produtos. «Para flores, limpamo-las das folhas remanescentes, secamo-las e embalamos. No caso dos óleos, quando obtivermos a licença, teremos depois a fase de formulação e enchimento dos frascos», precisa.


Há vários produtos medicinais à base da planta de canábis em processo de aprovação em Portugal

A produção tem sido, até aqui, essencialmente para exportação, mas a empresa espera mudanças em breve. Não obteve ainda aprovação para comercializar canábis medicinal em Portugal, mas já submeteu o pedido. A espera é encarada com normalidade. «A canábis medicinal é um produto complexo. Ao contrário do que estamos acostumados com outros produtos farmacêuticos, a dose e a forma dependem muito do paciente, não existem guidelines de actuação, e serão difíceis de criar, dada a sua imensa versatilidade», observa Sascha Mielcarek.

A Tilray está envolvida em nove ensaios clínicos mundiais e continua a apostar em parcerias com organizações académicas e científicas, a última das quais com a Universidade de Coimbra. O director-geral crê que serão precisas mais algumas décadas para estabelecer a evidência científica em todas e cada uma das indicações terapêuticas de que podem beneficiar os doentes.


No hospital

Em 31 de Janeiro de 2019, o Infarmed aprovou uma lista de sete indicações terapêuticas para a canábis, abrangendo doentes oncológicos em tratamentos de quimioterapia e radioterapia, portadores de VIH/sida e hepatite C, epilepsia, dor crónica, esclerose múltipla e glaucoma.

«A canábis é uma planta cujas substâncias têm muitos efeitos terapêuticos, mas que, tal como acontece com todos os medicamentos, não são inócuas». Assim começa Javier Pedraza a explicar o conceito de canábis medicinal, tal como o fez aos deputados da Assembleia da República, aquando da sua audição na Comissão Parlamentar de Saúde. «Costuma dizer-se que a diferença entre o remédio e o veneno está na dose. Veja-se que apesar de a substância ser a mesma, o álcool, toda a gente percebe que não é a mesma coisa beber um copo de cerveja ou beber um copo de bagaço», refere o consultor em tratamentos com canábis e seus derivados.

O especialista em Medicina Familiar e Comunitária lamenta a desinformação e o preconceito agarrados ao tema. «Nos bancos da faculdade ouvimos falar dela no capítulo das toxicodependências, inscrita como substância de abuso, que pode provocar psicoses e ser porta de entrada para outras drogas, e ponto final. Nunca se fala do sistema endocanabinóide ou do potencial terapêutico da canábis», lamenta.


«Graças à canábis, crianças com epilepsia ficaram sem crises convulsivas, doentes com dor crónica ficaram sem dores, pessoas com cancro melhoraram a qualidade de vida», garante o médico Javier Pedraza

Dos casos que conhece de doentes a fazer terapêutica com canábis medicinal, poucos foram os que não obtiveram benefícios. «Houve alguns com pouca tolerância ao efeito psicoactivo, outros com patologia em que a canábis simplesmente não resulta. Mas são mais as crianças com epilepsia farmacorresistente que ficaram sem crises convulsivas, os doentes com dor crónica que ficaram sem dores e as pessoas com cancro que melhoraram a qualidade de vida com a redução dos efeitos secundários da quimioterapia».

Recusa apresentar a canábis como uma panaceia, mas garante que é eficaz num leque vasto de situações. «Isso deve-se ao facto de interagir com o chamado sistema endocanabinóide, um sistema homeostático protector que temos no organismo, e que regula o ciclo sono-vigília, o apetite, a dor, o estado de ânimo, os movimentos finos, as náuseas e os vómitos… Por isso a canábis tem tantas utilizações terapêuticas». Do mesmo modo que no organismo humano existe um sistema opioide endógeno, onde são produzidas as endorfinas e a cujos receptores se ligam substâncias como a morfina e a codeína, assim acontece com o sistema endocanabinóide, ao qual se unem os fitocanabinóides da canábis, sobretudo o THC e o CBD, substâncias caracterizadas até ao momento como activas, com funções farmacológicas diferentes, apesar de existirem na planta muitos outros canabinóides, terpenos e flavonóides.


No laboratório

A chegada ao mercado nacional das primeiras flores, soluções de óleo e outros extractos da planta de canábis, para fins medicinais, deverá ocorrer em breve. À luz da Lei n.º 33/2018, de 18 de Julho, do Decreto-Lei n.º 8/2019, de 15 de Janeiro, o circuito será idêntico ao internacionalmente estabelecido: receita médica obrigatória e dispensa exclusiva em farmácias comunitárias.

Até ao momento, Portugal conta com um único medicamento: um spray aprovado para alguns sintomas da esclerose múltipla, comparticipado em 37% pelo SNS.

A libertação de produtos para o mercado obriga à obediência de requisitos físico-químicos e microbiológicos. O cultivo da planta só é possível mediante a submissão de um dossiê ao Infarmed. A entidade reguladora do medicamento e produtos de saúde exige a certificação, passo a passo, do processo de fabrico. Há ainda uma série de análises obrigatórias, efectuadas num laboratório com certificação GMP (Good manufacturing practices).

A maior plantação da Europa, com cinco hectares de área de cultivo, é a da Tilray em Cantanhede. A companhia estima que, dentro de dez anos, haverá 10 milhões de doentes no velho continente a usar produtos à base de canábis. O Laboratório de Estudos Farmacêuticos (LEF), da Associação Nacional das Farmácias, é parceiro da multinacional canadiana na certificação da qualidade.


«Somos a única entidade em Portugal que se pode equiparar a uma one-stop shop», afirma a directora-técnica do LEF

«Presentemente, o LEF é a única entidade em Portugal que, neste campo, se pode equiparar a uma one-stop shop: estamos capacitados para apoiar as empresas, desde a definição da estratégia inicial e apoio na obtenção das licenças para cultivo, até à farmacovigilância dos produtos, quando forem lançados no mercado», refere Fátima Carvalho, directora-técnica do LEF.


Equipa do LEF fez as especializações necessárias para responder às necessidades do novo mercado

A equipa do LEF fez diversas especializações para estar apta a responder às especificidades da nova área. No entender da directora-técnica, é «a experiência de quase três décadas na prestação de serviços de assessoria regulamentar, de fabrico e analíticos à indústria farmacêutica e distribuição que marca a diferença».

A carteira de clientes do LEF conta com empresas em diferentes estádios de evolução. Nalguns casos, foi contratado para certificar todo o processo, desde a obtenção de licenciamento para cultivo, ao fabrico e à distribuição. Noutros, presta serviços em apenas uma etapa, como a elaboração dos dossiês técnicos de autorização de introdução no mercado, a submeter ao Infarmed, ou o controlo de qualidade.

Por ter uma unidade de produção com certificação GMP, preparada para o desenvolvimento farmacêutico, o LEF começa a ser procurado para trabalhar no desenvolvimento de produtos formulados. «Temos pedidos para trabalhar diversas formulações, como comprimidos, soluções e cremes», anuncia Fátima Carvalho.