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3 setembro 2021
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de José Pedro Tomaz Fotografia de José Pedro Tomaz Vídeo de Nuno Santos Vídeo de Nuno Santos

A mulher sem medo

Paula encara o cancro genético como uma maratona, que tem vencido com distinção.​

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Desde muito cedo Paula Cruz interiorizou que um dia teria cancro. «Por questões objectivas». Pouco dada a crenças de sorte ou de azar, foi a genética que a convenceu a preparar-se para o pior cenário. O diagnóstico de cancro do ovário chegou em 2011, sem surpresas. E nem a taxa de sobrevivência de oito a 12 por cento a demoveu. Dez anos e muitas aventuras depois, «ainda cá estou». Através do seu testemunho, procura inspirar outras mulheres a agarrarem-se à vida, sem dramas, e com uma alegria impossível de abalar.

Natural da Marinha Grande, Paula deveria ter uns 15 anos quando decidiu que queria ser publicitária. Licenciou-se em Lisboa e passou por várias agências publicitárias, onde trabalhou para marcas nacionais de renome.


Professora universitária e consultora de comunicação, Paula é apaixonada pelo seu trabalho

Da publicidade ao marketing, passando pela comunicação estratégica, ser professora nunca foi um objectivo. Há 29 anos, quando surgiu a oportunidade de leccionar no Ensino Superior, descobriu uma paixão que a acompanha até aos dias de hoje. «Se ganhasse o Euromilhões não deixava de dar aulas», comenta, entre risos.

Em 2001 mudou-se para o Porto para gerir o departamento de comunicação de um grande grupo nacional. «Não ia para ficar». Ao longo dos últimos 20 anos, foi ficando. «Hoje não sou bem de lado nenhum; sou portuguesa».

Na juventude viveu de perto a brutalidade da luta da mãe contra o cancro da mama. Por saber que o cancro tinha já afectado várias mulheres na família, Paula levou a prevenção muito a sério. De seis em seis meses, religiosamente, comparecia na ginecologista para uma consulta de rotina. Pelo caminho, devorou livros sobre a matéria, enquanto via a carreira crescer.

Os primeiros sinais de alarme surgiram em 2010, embora os exames de rotina não apresentassem indícios de problema. «Sentia um desconforto, alguma coisa não estava bem», conta. A médica aconselhou-a a fazer um tratamento para uma possível inflamação pélvica. Mas quando surgiu a síndrome vertiginosa, que se pensou ser provocada pelo antibiótico, não foi possível dar continuidade ao tratamento.

Seguiram-se meses de exames inconclusivos e discussões de cenários com os médicos.

Um ano mais tarde, após um exame que denunciou um problema no fígado, Paula foi, finalmente, aconselhada a fazer um marcador para o cancro do ovário. O diagnóstico confirmou-se. A doença estava em fase avançada, já com uma metástase no fígado.

A 4 de Outubro de 2011 foi encaminhada para o Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto. A cirurgia, que se esperava rápida, demorou quatro horas.

Em Janeiro de 2012 começou a quimioterapia e, em três sessões os valores dos marcadores tumorais voltaram ao normal. A notícia surpreendeu toda a gente, mas Paula não se deixou convencer. «Tinha lido muito sobre isto e comecei a considerar que poderia ser uma questão genética». Por isso, pediu à médica um despiste para detecção da mutação genética BRCA1. O resultado positivo permitiu perceber que o gene também estava presente em vários membros da família.

A consultora de comunicação sabia que mulheres portadoras deste gene hereditário têm uma probabilidade de 50 por cento de vir a desenvolver cancro dos ovários. A percentagem sobe para 70 por cento no caso do cancro da mama. O risco de reincidência é, também, elevado.

Em 2013, durante uma aula, Paula Cruz teve novamente sintomas da síndrome vertiginosa. «Eu sabia que aquilo tinha voltado». De regresso ao IPO, era tempo de nova cirurgia.

Depois da quimioterapia, percebeu-se que a doença não tinha sido sanada. Com o apoio do seguro de saúde, Paula enviou o processo para um médico especialista nos Estados Unidos da América. Só nesse momento percebeu que o cancro era incurável. «A doença vai aparecer o resto da minha vida, aqui e ali, como um grão de areia».

 


Desde então, ano sim ano não, o cancro reaparece. Ouvir o corpo é crucial, mas a literacia em saúde é igualmente importante. Trabalhar em equipa com os médicos tem-lhe permitido ser parte activa no processo em todos os momentos. Para controlar a mutação genética, Paula conta com a ajuda de um medicamento inovador, o inibidor PARP, que tem um efeito semelhante à quimioterapia oral. «É um tratamento fundamental para a sobrevida das pessoas com este gene», explica.


Paula enfrenta a doença com uma alegria inabalável

Aos 56 anos, Paula não tem medo da morte. «Faço por rir e tento olhar para a vida pela positiva». O sorriso contagiante não a deixa mentir. Nas associações de doentes de que faz parte, o seu testemunho é inspirador. «Dizem-me que sou um máximo. Mas não me sinto nada um máximo», conta, entre gargalhadas.

Ainda assim, admite que a sua história tenha um grande impacto. Por isso deixa um alerta: «estejam atentos ao vosso corpo, a antecedentes familiares». E reforça a importância do despiste genético: uma arma preventiva que pode fazer toda a diferença numa doença tão silenciosa e difícil de diagnosticar.


Enzo é o fiel companheiro de Paula há 13 anos

Nesta jornada conta com o apoio incondicional da família e dos amigos, e com o amor sem medidas de Enzo, um boxer de 13 anos que a alegra nos dias em que se sente menos ela própria. Por altura das primeiras sessões de quimioterapia ainda tentaram convencê-la do perigo de viver com um cão quando as defesas estão tão baixas. «Eu disse logo: “Nem pensar. Tudo menos o meu cão”».

Paula Cruz vê o futuro com o mesmo sentido prático e boa-disposição com que tem ultrapassado a doença. No horizonte está a possibilidade de escrever um livro e a certeza de continuar a estudar para se manter a par das tendências na área em que trabalha. «E subir o Kilimanjaro», acrescenta, com um sorriso de orelha a orelha. «Um dia passei lá perto, olhei para cima e decidi: “é exequível”».

​​«Não devemos abraçar a doença e fazer dela nossa», aconselha

Quanto ao cancro, esse continuará sempre à espreita. Paula está em paz com isso. «Não devemos abraçar a doença e fazer dela nossa». E recorda a cara dos médicos quando recebeu o diagnóstico pela primeira vez e a aconselharam a preparar-se para o pior. «Basicamente estavam a dizer-me que eu ia morrer. Ainda cá estou».

Depois de fintar as estatísticas, confessa que a relação com a doença nunca foi de luta. «Não pode ser de luta, se não desgastamo-nos». Por isso, prefere ver o processo como uma maratona, uma convivência. «Estou “eu cá, tu lá” com a morte», remata. «E se tiver de morrer, que morra a rir».