É a mais velha de cinco irmãos, dois rapazes, um médico e outro engenheiro agrónomo, e três raparigas, todas Maria de primeiro nome. A casa de família ficava em Santiago de Bougado. A aldeia tinha uns 2 mil habitantes, era uma grande família. A porta principal abria-se aos pobres um dia por semana. Serviam-se de batatas, milho, hortaliças. Havia umas moedas quando era preciso. Em boa verdade, naquele tempo a economia de subsistência triunfava sobre a pobreza. Estávamos no auge do minifúndio do Minho religioso: a cada homem um pedaço de terra, a todos a virtude da caridade e o dever da partilha. «Toda a gente tinha o seu quintal e plantava as suas coisas», relata Maria Júlia. Havia vacas e bois à solta pelos caminhos e para beber água as manadas sabiam ir dar ao rio.
Seguindo a vontade do pai, Maria Júlia graduou-se em 1945 na Faculdade de Farmácia do Porto. Aos 22 anos, servir os outros já era uma vocação irreprimível. O pai, um exemplo diário disso. Quis ajudá-lo na administração de vacinas e injectáveis. E ele, sempre rigoroso em assuntos profissionais, «fez questão que tirasse Enfermagem». No último ano da licenciatura, inscreveu-se na Faculdade de Medicina do Porto e tirou simultaneamente o curso de enfermeira visitadora. Na Faculdade de Farmácia, o Professor Borges nem queria acreditar no que via. «Dizia que uma farmacêutica ir fazer de enfermeira era como saltar de cavalo para burro», cita Maria Júlia, com um sorriso.
Na verdade não saltou para um burro, mas para uma bicicleta. Mas essa corrida não começou logo. Nos primeiros cinco anos, a farmacêutica e enfermeira Maria Júlia foi o braço direito do pai. Para montar farmácia, esperou pela formatura da segunda farmacêutica da família: a irmã Maria José, dois anos e dois meses mais nova. «E mais bonita», recorda-a, com saudade. Abriram as portas da Farmácia Moreira Padrão em 1951, um ano após a morte do pai. O doutor Avelino aprovou o projecto em vida, com uma condição. «Já havia uma farmácia na Trofa. O meu pai disse-nos para não entrarmos em guerras comerciais, que deveríamos ser simpáticas e colaborantes». E assim foi, como estava escrito.
As duas irmãs criaram um serviço farmacêutico, na Trofa dos anos 50, que ainda hoje seria vanguardista. Montadas em bicicletas, dispensavam medicamentos e serviços de enfermagem ao domicílio. «Foi muito importante porque não havia enfermagem na Trofa, as pessoas não tinham quem as assistisse», relata. Faziam de tudo. Curativos, ligaduras. Lancetavam feridas e administravam injectáveis por via endovenosa. Quando apareceu a penicilina, puderam salvar muitas vidas. «Foi uma descoberta miraculosa. Eu própria tive uma infecção no ouvido que rebentou por dentro e tratei-me com ela», relembra.
Maria Júlia e Maria José saíam pelas aldeias de bicicleta, muitas vezes revezavam-se nas corridas. «Nesse tempo, não havia horário de trabalho. Aplicávamos injecções de penicilina de quatro em quatro horas. Enquanto uma descansava, a outra ia». Durante a noite, preparavam medicamentos manipulados, sem interromper os domicílios. «Não havia medo. Nunca tivemos um mau encontro, de dia ou de noite». Belos tempos. «Éramos as meninas da farmácia, as pessoas respeitavam-nos muito». Hoje parece impossível, mas não cobravam um centavo pelos serviços ao domicílio. Quem podia oferecia géneros, como batatas, pão e hortaliças, que às meninas da farmácia não sobrava tempo para semeaduras.
Maria Júlia, 92 anos festejados em 3 de Dezembro, vive por cima da farmácia e trabalha todos os dias. Acompanha a gestão financeira e faz ela própria os pagamentos a fornecedores. «Enquanto eu puder, é melhor assim. A gente sente-se melhor a gerir o que é seu, sobretudo em tempos tão difíceis como estes». Um cancro maldito roubou-lhe a irmã há dez anos. Mas a família deu-lhe outra parceira. Tem uma sobrinha neta licenciada em Ciências Farmacêuticas ao balcão. Maria Júlia cumprimenta todos os clientes, mas a equipa evita que se dedique ao atendimento. Não é que não desse conta do recado com o profissionalismo de sempre, nada disso. O problema é que todos os dias dispensava a fiado. As pessoas abusam e os tempos não estão para isso.
Maria Júlia seguiu as pisadas do pai e defendeu a Monarquia nas listas do Partido Popular Monárquico. «Tenho o bichinho da política, não consigo ficar alheada dos problemas do país». Vota sempre, até nas presidenciais. «Voto no melhor para Portugal, embora preferisse um Rei, educado para isso». É amiga de D. Duarte Pio, que a ajudou a instalar a Caixa de Crédito Agrícola na Trofa. Católica, participou sempre nas obras da Igreja. Ajudou a fundar um lar de idosos e a instalar o quartel dos bombeiros. Era viciada nos congressos da Federação Internacional dos Farmacêuticos, onde conheceu João Almiro.
Maria Júlia é uma excepcional conversadora. Com ela, não se dá pelo tempo a passar. Fala de tudo com exactidão e um sorriso, sem nunca exagerar na dose. Goza de boa saúde, até nisso sai à mãe. Come de tudo, até um bom sarrabulho, com o seu copo de vinho. É mais regrada com a televisão. Fica-se pelos noticiários e um ou outro programa de política. Vai ao café, gosta de caminhar um pouco todos os dias. Quando lhe perguntámos o segredo de uma longevidade tão lúcida, responde sem hesitar que o trabalho é o melhor dos remédios que conhece nesta vida. «A mãe dizia muitas vezes: “Não parar! Parar é morrer!”. E é verdade».
Artigo publicado originalmente na Revista Farmácia Portuguesa 212