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14 outubro 2019
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de José Pedro Tomaz Fotografia de José Pedro Tomaz

A cuidadora

​​​​​​​​Resistiu ao cancro para zelar pela família.

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Margarida Silva sempre foi uma mulher de acção, não parava um minuto quieta. Nunca lhe faltou o que fazer, com três filhos para criar e o trabalho a tempo inteiro numa fábrica de calçado, propriedade da família. Quando soube que sofria de cancro foi obrigada a abrandar o ritmo. Não foi fácil. Hoje reconhece, a rir, que nunca chegou verdadeiramente a gostar de viver devagar. A acção faz falta à massa de que é feita, mas aprendeu a gerir melhor o stress. Ganhou tranquilidade.

 


Margarida encontrou força para enfrentar o cancro na fé que nunca a abandonou e nos filhos pelos quais tinha de lutar. A família é o seu chão. Está ali, pendurada nas fotografias das paredes, emoldurada em cima das mesinhas de cabeceira. Os filhos crianças. Os filhos já adolescentes. O casamento da mais velha. A casa grande, arrumada com desvelo, é a sua vida. Margarida é a primeira a dizê-lo. Não é muito de viajar ou passear. Gosta do quotidiano.  Ir à missa ao domingo de manhã com o marido, sair para beber café, encontrar-se com uma amiga para tomar um chá. Simples e despachada, num minuto fala arrebatada, para logo a seguir deixar a emoção assoberbar-lhe a voz.


A filha mais velha, Vânia, e o primeiro neto, Santiago

Sempre soube que podia contar com a família e a doença criou a oportunidade de o confirmar. Os filhos faziam tudo o que podiam para ajudá-la e distraí- -la. «Se pudessem pegar-me ao colo, pegavam», reconhece. O forte sentimento de matriarca levou-a a protegê-los ao longo de todo o processo. À frente da família mostrou-se sempre forte. Nunca desarmava.  «Só me queixo quando estou na última», assume.


Luna e Pipoca fazem parte da família, além dos dois gatos

Quando, depois de um rastreio à mama, o médico de família a mandou fazer uma biópsia, foi sozinha. Uma semana depois, telefonaram-lhe para ir a uma consulta. Margarida estranhou a rapidez, inquietou-se, mas manteve o controlo. Não quis transtornar os afazeres dos familiares e insistiu em ir sozinha. Fez-se forte, argumentou: «O que tiver agora é o que já tinha há dias. Tenho de aceitar o que aí vem». O pior confirmou-se. Tinha cancro e era preciso tirar a mama. Uma irmã tinha morrido de cancro do colo do útero. Desde essa, altura ganhou pavor a três palavras: IPO, quimioterapia e cancro. «Vou ser a próxima», disse para si, e começou a chorar. A médica explicou-lhe que o cancro da mama era «bom de tratar» e que, com sorte, nem quimioterapia teria de fazer. A operação seria feita ali mesmo, no hospital de Santa Maria da Feira, que tinha um bom historial no tratamento do cancro da mama. Margarida ficou mais descansada.  No hospital chorou tudo o que tinha para chorar. «Os meus não me viram chorar», diz.

Quando contou ao marido e este começou a chorar, instou-o a ter coragem. Precisavam ambos de ser fortes para apoiar os miúdos. No seu jeito despachado, disse, a rir: «Ai, por acaso é essa força toda que eu preciso. Continua!».

Numa quinta-feira recebeu a notícia, na quarta seguinte foi operada. Ainda foi trabalhar na tarde em que soube e no dia seguinte. Havia muito trabalho a fazer e, além disso, queria distrair-se. Foi para a operação a rir. O que tem de ser tem muita força, pensava. «Vou tirar a mama e fico limpinha. Mais mama, menos mama, se fosse um braço ou uma perna era pior». A mastectomia correu bem. O pior foi depois. Nos três anos que se seguiram fez sete ou oito operações, perdeu-lhes a conta. A operação para esvaziar os gânglios da axila esquerda, várias operações de reconstrução da mama. A operação ao ombro direito para resolver uma tendinite, que não correu bem, e a obrigou a pedir a reforma por invalidez.

Durante um ano e três meses ia todos os dias ao hospital. Fisioterapia, consultas várias. Tomar conta da saúde tornou-se um trabalho a tempo inteiro. Eram tantas as cartas que recebia do hospital que arranjou uma pasta e ao domingo à noite organizava a semana que aí vinha. Gostava especialmente do grupo de psicoterapia que frequentava todas as semanas. Fez lá amigas. «Adoro os dias da psicologia», diz com gratidão.


Fazer croché é uma das actividades do ateliê terapêutico de apoio a mulheres com cancro da mama

Em casa, trocou os trabalhos domésticos a que os braços deixaram de dar resposta por outras actividades. Ler, ver televisão, dormir. Ia ao café, fazia muitas caminhadas. Às vezes sentia falta de 'virar a casa de pernas para o ar'. Sentia-se «um “pastelão”», confessa. Depois lembrava-se do carinho dos seus e do apoio das amigas. Uma delas mandava mensagens de encorajamento todos os dias. «Está tudo bem», dizia para si mesma.


Nos próximos meses, Margarida vai tomar conta do neto

Hoje, reconhece, «houve coisas que até melhoraram». Margarida aprendeu a fazer o que pode e satisfazer-se com isso. E faz cada vez mais, à medida que se vai sentido fortalecida. Vai à fábrica ajudar o marido. Faz recados, vai ao banco ou aos correios.  Os braços respondem melhor aos trabalhos exigidos pela enorme casa familiar. Na vivenda de dois andares ladeada pelo jardim ainda moram dois filhos, dois cães e dois gatos, além do casal. Não falta o que fazer. Sobretudo agora que nasceu Santiago, o neto que pensou já não vir a conhecer. É a sua grande alegria. De toda a família. «Toda a gente quer o menino, não chega para todos», explica, emocionada. Já se comprometeu a tomar conta do neto quando a filha tiver de regressar ao trabalho, para que não tenha de ir para a creche antes de fazer um ano. Os dias vão voltar a ser completamente preenchidos.

 


Margarida, a cuidadora incansável, volta a 'não ter mãos a medir'. À vida pede para ver os filhos bem e unidos, a família com saúde, os netos a crescer. Ter genica para arranjar a casa à sua maneira, «tudo como deve ser». Já formou as duas filhas mais velhas, de 26 e 31 anos. Daqui a dois anos o mais novo termina o curso de Medicina. A filha do meio já comprou apartamento e até ao final do ano deve deixar a casa da família. Margarida não tem angústias de ficar sozinha. Os filhos andam sempre ao redor dela e do marido. Não raras vezes saem os dois e um dos filhos liga: «Onde estão? Esperem, que vou aí ter». A mais velha pede a sua companhia para isto e aquilo, a do meio pergunta se o namorado pode ir lá jantar, o mais novo leva amigos para ficarem durante a Feira Medieval, festa rija em Santa Maria da Feira. «A minha casa tem mel», diz com orgulho.
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