Numa manhã em que o sol vai espreitando por entre as nuvens, Carolina Duarte é uma entre os vários atletas de elite a treinar no Centro de Alto Rendimento do Jamor. «Bora, Cuca! Bora, bora, bora, bora!», grita João Abrantes, o seu treinador. Depois de correr para trás e para a frente a bom ritmo, faz uma corrida a dar tudo. Termina-a visivelmente cansada, mas, ao contrário do que se poderia imaginar, o esforço não é seguido de descanso. Depois de poucos minutos para recuperar o fôlego, bebe água e regressa à pista, uma vez mais incitada pelo «bora, bora, bora!» do treinador e de outros atletas presentes.
A um mês dos Jogos Paraolímpicos, Cuca treina seis dias por semana
Cuca, como todos lhe chamam, é uma atleta paraolímpica, o que não significa que treine com menos exigência do que os atletas da competição regular. Referindo apenas duas das suas conquistas recentes, há dois meses bateu o recorde da Europa e foi vice-campeã do mundo dos 400 metros na sua categoria, a T13. Aos 34 anos, depois de duas paragens na carreira, a primeira porque tinha desistido do atletismo e a última porque engravidou, continua altamente empenhada. «Vou buscar ouro», afirma a rir. «Sou muito, muito disciplinada, tenho a disciplina do Ronaldo», diz com nova gargalhada, «então também consigo chegar lá. Dou tudo em todos os treinos, o que me mantém motivada para continuar e querer sempre mais e mais».
Com jeito natural para o desporto, entre a infância e a adolescência praticou natação («nadava antes de andar»), judo, ténis, equitação, voleibol, futebol. Destacou-se em várias destas modalidades, mas, ou porque tinha baixo peso, ou porque era a única rapariga, ou, no ténis, por causa da condição genética com que nasceu e que resultou em progressiva perda de visão, acabou por ter de as abandonar. No caso do ténis, foi «com imensa pena», mas a sua capacidade visual tinha piorado, e «só conseguia ver a bola quando passava a rede, sem ter tempo para reagir».
Desportista nata, Carolina escolheu o atletismo inspirada por Francis Obikwelu
Fazendo jus ao ditado 'quando se fecha uma porta, abre-se uma janela', a adolescente Cuca, eterna apaixonada por desporto, ficou particularmente inspirada por Francis Obikwelu, que nos Jogos Olímpicos de 2004 conquistou a medalha de prata nos 100 metros. «Eu já adorava correr, mesmo na escola», explica, e «a medalha de prata do Francis Obikwelu fez-me um clique e disse "Uau, também quero ganhar esta medalha!"». Com 14 anos, nem um mês passou entre este episódio e a inscrição no atletismo. Apesar de a sua visão se ter progressivamente deteriorado – quando olha em frente vê «uma mancha», mas consegue ver pelos “cantos” dos olhos – ainda faz provas da competição regular e chegou mesmo a integrar a equipa que correu a estafeta dos 4x400 metros no Campeonato da Europa de Helsínquia, em 2012.
A vida de um atleta de alta competição é muitíssimo exigente e regrada. «É complicada não só para nós, mas também para quem nos rodeia», explica. Na juventude, custava-lhe imenso «dizer que não», dando o exemplo da relação com as suas amigas. «É difícil de gerir, porque dizem “vamos só à praia apanhar sol”, mas eu não posso porque me cansa; “é só um jantarzinho, num sítio calmo”, mas isso atrapalha-me na hora de dormir; "ah, mas é só um almoço”, só que a seguir ao almoço faço a sesta». Cansada de uma vida de sacrifício, em 2013, aos 23 anos, desistiu do atletismo.
Passados dois anos, partiu para Londres. «Não à procura da vida louca», mas para «trabalhar, conhecer outras pessoas, outras culturas». Com um mestrado em Administração de Empresas, Economia e Gestão Empresarial, «sentia que uma das razões porque não arranjava trabalho [em Portugal] era por ser diferente». A condição genética com que nasceu tem efeitos no crescimento do cabelo, além de afetar a visão. Nas entrevistas, Cuca não mencionava as dificuldades em ver, por isso concluiu que o único fator que a diferenciava era o cabelo. Em Londres decidiu que iria «ser igual a toda a gente», passou a usar uma peruca e conseguiu vários trabalhos: em eventos, na área da restauração, a entregar jornais nas estações de metro, até conhecer o futuro marido e passar a um emprego na área do turismo que lhe permitiu viver na capital britânica com «alguma qualidade de vida».
Quando regressou ao atletismo não pensava em competir
Com o atletismo ainda afastado dos planos, uma amiga convenceu-a a voltar a treinar, apenas «para manter a forma». O treinador era Chris Zah, que na altura já treinava uma atleta olímpica. «De repente, eu estava na armadilha de voltar a competir, mas era a nível muito regional, em provas amadoras». O treinador, percebendo o seu potencial, dizia-lhe que era «um desperdício» resumir-se a essas provas locais. A ver pior do que quando tinha abandonado o atletismo em Portugal, Zah sugeriu-lhe que abraçasse a competição para pessoas com deficiência visual. Primeiro recusou, «já não fazia sentido sacrificar-me tanto para conseguir competir ao nível em que estava antes», e que é o nível atual. Não por muito tempo. «Quando gostamos de competir e entramos outra vez num ambiente de competição, é difícil não corresponder. Enfim, convenceu-me, “OK, vamos lá”».
O treinador tinha razão: nos últimos anos Cuca tem somado ótimos resultados. Entretanto regressada a Portugal e cada vez em melhor forma, preparava-se para competir nos Jogos Paraolímpicos de Tóquio, que a pandemia de COVID-19 fez serem adiados de 2020 para 2021, quando descobriu que estava grávida. A filha nasceu em julho e a mãe recomeçou a correr quando ela tinha três semanas. «Já me sentia bem», justifica. Quando a bebé estava com dois meses, passou a trazê-la para o Jamor.
Aos 34 anos bateu um recorde da Europa
Em 2023 alcançou a medalha de prata nos Campeonatos do Mundo, bisando o feito que tinha conseguido em 2019. João Abrantes, coordenador do Departamento de Alto Rendimento da Federação Portuguesa de Atletismo, já era o seu treinador. «Não é fácil aos 32 anos voltar a este nível» disse, na altura, Abrantes. «Ser mãe, com esta idade, as condicionantes todas que uma mãe tem para conseguir treinar e cuidar da filha, é um resultado espetacular». Mas o melhor estava para vir em 2024: nova medalha de prata e o recorde europeu. «Este ano já fiz a marca que consegui antes de bater o meu recorde pessoal quando tinha 22 anos, portanto não estou pior do que estava há 12 anos».
À disciplina, foco, entrega e boa-disposição, Cuca soma agora uma «maturidade, predisposição para treinar e atitude no treino completamente diferentes, e isso ganha-se com distintas competições», considera. Neste momento, a um mês dos Jogos Paraolímpicos de Paris, treina seis dias por semana. «Se não tiver um prazer brutal em treinar é muito, muito difícil um atleta conseguir manter-se ao mais alto nível, porque não é compatível o nível de exigência que temos no treino, mas também no dia a dia, com tudo aquilo que temos que abdicar». No caso de Carolina, o prazer mantém-se inalterado: «A Los Angeles [os Jogos de 2028] vou de certeza, mas gostava de ir aos de Brisbane [2032] também».