Viver para cuidar, cuidar sem desistir de viver. Aos 54 anos, Paula Rodrigues, mulher de porte esguio e trato elegante sabe, como ninguém, o significado destas palavras. O marido, Alfredo, de 73 anos, sofre de demência.
«O que o meu marido tem não é Alzheimer. Trata-se de uma demência frontotemporal, em que a memória imediata e a parte da linguagem são as faculdades mais afectadas».
Os primeiros sinais de alarme chegaram em 2017. «Um dia fomos às urgências com a nossa filha [Joana, 20 anos] e, de repente, ele diz: “Onde é que nós estamos?”», lembra Paula Rodrigues, natural de Lisboa.
Vinte e quatro horas por dia, num turno sem fim, Paula cuida do companheiro que está lentamente a perder as faculdades mentais.
«Ser cuidador informal não é para todos. Temos de nascer cuidadores», afiança.
O diagnóstico de Alfredo, proprietário de uma loja de instrumentos musicais em Sintra, e homem muito voltado para a música, veio transformar por completo a vida que todos levavam.
«Qualquer coisa que fosse preciso resolver, desde um problema de mecânica, electricidade, bricolage, ou construção, lá estava ele. E nós habituámo-nos a essa imagem».
Ao longo da vida, Alfredo sempre foi «um autodidacta» em diferentes áreas, empreendedor e empresário de sucesso. Paula, a seu lado, é mulher que irradia luz.
«Fala-se tanto da pandemia, pois eu estou confinada há três anos», solta num misto de pragmatismo e humor.
Diante da doença do companheiro deu-se sempre, sempre, à luta. E nunca por vencida.
«Tenho feito de tudo, inclusive participar em formações e palestras para conhecer melhor esta doença. O facto de estar estável é um ganho, porque é um processo degenerativo».
Longe de ser um caminho fácil, Paula abraçou o compromisso. «Sinto que estou a subir uma montanha muito íngreme e com uma mochila muito, muito pesada às costas».
«Acredito que todos podemos escolher o caminho que queremos seguir. Eu escolhi este», sublinha, convicta.
Mulher-coragem, Paula tem-se desdobrado para que o marido tenha uma vida activa. Quase todos os dias leva Alfredo até à loja de música e é lá, entre CD e instrumentos musicais, que o empresário vai ocupando o tempo.
«Ele consegue manter-se autónomo por uma a duas horas, no máximo», conta, esclarecendo que não poder conduzir é uma das maiores perturbações do marido.
Paula incentiva Alfredo a sentar-se ao piano e tocar, pois isso ajuda-o a manter-se tranquilo. «Há situações curiosas nas demências que não conseguimos compreender. A única coisa que é estável no meu marido é a música. É capaz de ouvir uma música e a seguir vai tocá-la».
«Aceitei dar a cara nesta reportagem para homenagear os cuidadores deste país»
A cumprir diariamente rotinas rígidas no que respeita a horários para que «nada falhe» no «mundo» de Alfredo, Paula Rodrigues não desistiu de si. Continua até aos dias de hoje a trabalhar. Massagista de profissão, duas a três vezes por semana faz domicílios, deslocando-se a casa de pessoas que acompanha há muito anos.
«É a minha terapia, não tenho outra. Quando se faz esta escolha [ser cuidadora informal], temos de adiar o que nos dá prazer. Temos de adiar a nossa liberdade», confidencia.
Na Associação Portuguesa de Familiares e Amigos dos Doentes de Alzheimer descobriu uma voz amiga. Em contacto com profissionais especializados e grupos de apoio, reencontrou a luz e a esperança que, em tantas horas, lhe faltaram.
«A psicóloga desta associação escreveu um artigo muito interessante no qual descrevia “os cuidadores são mestres na arte de viver” e eu subscrevo-o. Estamos, de facto, sempre a aprender».
Paula ajeita o corpo na cadeira. Por uns libertadores minutos, entrega-se a uma das suas paixões, a poesia. Afina a voz e declama o poema “Recomeça”, de Miguel Torga:
Recomeça...
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
(…)
Nas palavras de Miguel Torga, e de outros poetas, Paula tem encontrado força motivacional para levar em frente a maior das suas lutas.
Também na fé encontrou amparo para não se dar a derrotas. «Não sou praticante, mas sou católica. E sim, rezo, rezo muito».
Nas horas de maior fraqueza refugia-se na natureza. «Costumo ir até um monte, perto da nossa casa. É lá que eu grito, falo e choro. É lá que, no fim, digo: “Já choraste, já gritaste. Amanhã é outro dia, vamos lá levantar!”».
Para Paula Rodrigues, o reconhecimento do estatuto de cuidador informal é uma grande conquista para o país. «Veio dar valor ao cuidador, não está só em casa a mudar fraldas, a sofrer. Estão-lhe a dar um estatuto», considera. O amor que a une a Alfredo tem-na conduzido à superação. «Eu passei a ser a cuidadora, a representante legal, a gestora, a que organiza, a que corta a relva, a que lhe faz companhia… Quero dar-lhe tudo, quero dar-lhe dignidade, quero preservá-lo. E que ele seja feliz».
Estima-se que perto de 1,4 milhões de pessoas em Portugal cuidem regularmente de um familiar dependente: filho, marido, mulher, pais ou avós.
«Aceitei dar a cara nesta reportagem para homenagear os cuidadores deste país. Por eles vale a pena. Quero deixar-lhes uma palavra de agradecimento. Bem-haja a todos os que optaram por ser cuidadores informais e que, todos os dias, dizem: “Vamos lá a mais um dia!”».