No perfil de Instagram de Ana Ribeiro, repleto de cores vibrantes e referências a artistas plásticos, aparece uma publicação em que, com um sorriso tranquilo, pergunta: «Como fiquei surda?».
Ana, saudável até aos 39 anos, desportista – praticava e deu aulas de trapézio, entre outras atividades, conta que o parto do filho mais novo, em 2019, foi «particularmente difícil», deixando-a com «lesões numa anca e uma série de outras complicações, tão violento foi». As piores consequências, porém, estavam por vir. Devido a «uma negligência hospitalar na aplicação da anestesia», 24 horas após o nascimento do bebé «não ouvia, não me levantava, tinha dores de cabeça horríveis e febres altíssimas».
Apesar dos sinais de doença grave, enfrentou preconceitos que adiaram uma correta avaliação dos seus sintomas, interpretados como «uma psicose». No seu Boletim de Saúde da Grávida constava uma depressão, que nunca quis esconder. «A saúde mental é para ser falada e tratar», declara. E observa, com ironia: «Se é uma pessoa que já teve uma depressão, é óbvio que só pode ser uma coisa do foro psiquiátrico, não é?»
A pandemia trouxe-lhe a oportunidade de voltar a trabalhar com artes plásticas e com crianças
Com exames a indicarem níveis alarmantes de infeção geral, Ana foi finalmente transferida para o serviço de infecciologia. Uma punção lombar revelou uma meningite bacteriana. Nesta fase, já «tinha alucinações, tinha bactérias no cérebro, não sei como não me fui de vez». Seguiram-se «21 dias de penicilina intravenosa sete vezes por dia, com o cateter a ser mudado a cada 24 horas. Foi tudo muito, muito agressivo».
Ana ficou com surdez profunda e problemas graves de equilíbrio, que se somaram às lesões da anca. Quando teve alta não conseguia andar. «Subi os dois andares até casa à conta de braços», com a força que conquistara no trapézio e com a ajuda de um fisioterapeuta que a levava a treinar nas escadarias do hospital. Mesmo nos momentos mais difíceis, nunca perdeu a força mental e o foco: «Eu disse-lhe “moro no segundo andar, não tenho elevador e não vou para casa ao colo de ninguém”». Foi uma das «pessoas incríveis» que também conheceu nos hospitais.
Outro passo essencial para a sua recuperação foi a colocação de implantes cocleares, que lhe permitiram recuperar algum grau de audição. «Sou um ser biónico», brinca, «há uma parte de mim que funciona tecnologicamente e de X em X tempo precisa de ir à revisão, como um carro». A gravidade dos danos na cóclea, a parte do ouvido responsável pela função auditiva, não permite «sons limpos. É sempre um borrão sonoro».
«O ser humano tem uma capacidade incrível de criar estratégias»
Cinco anos depois, o tempo foi um facilitador. «Por duas razões: porque nos habituamos e porque o ser humano tem esta capacidade incrível de criar estratégias, o cérebro é altamente plástico». Exemplo desta capacidade cerebral é o facto de apesar de não conseguir entender todas as palavras que ouve, percebe o seu significado, como muitas vezes acontece com as línguas estrangeiras. «O meu sistema vestibular [essencial para manter o equilíbrio] morreu, mas eu vou para o meu cérebro arranjar uma forma alternativa de chegar aos sítios. Isto implica treinos diários para andar e treino, treino, treino». Um médico disse-lhe «a partir de agora, tem de ser uma atleta de alta competição para ter uma vida normal». E é o que faço: todos os dias levo o meu corpo um bocadinho mais além».
Nestes anos também conseguiu melhorias na discriminação dos sons, mas para entender bem os outros depende da leitura labial, técnica que só é eficaz em ambientes silenciosos e bem iluminados. Aprendeu a pedir ajuda quando precisa, o que no início lhe era muito complicado. Não por não querer que os outros saibam das suas dificuldades em ouvir. «Até gosto que se vejam os implantes, porque as pessoas às vezes não acreditam que eu sou surda. Nunca tive questões com a deficiência, nunca a quis esconder. Quanto mais informação eu colocar do lado de lá, mais me facilitam a vida».
Professora de artes visuais, apaixonada pelos alunos, pelo trabalho na sala de aula e pela escola, teve de se reformar. A pandemia de COVID-19, que chegou poucos meses depois de voltar para casa, trouxe-lhe a oportunidade de voltar a trabalhar com artes plásticas e com crianças. Como a escola da sua filha, acabada de fazer quatro anos, não propôs atividades à distância, Ana pôs mãos à obra.
Ana não esconde os seus implantes
Socorrendo-se da grande biblioteca infantil da mãe, educadora de infância, através do YouTube começou a contar uma história diariamente e a propor uma atividade à turma da filha. Os vídeos tiveram tanto sucesso, que amigos e conhecidos começaram a pedir para ter acesso às suas aulas e o projeto cresceu.
Quando terminou o confinamento e as crianças voltaram à escola, Ana confrontou-se com a sua realidade. «Como vou sobreviver? Não consigo viver sem dar aulas. Não consigo viver sem pensar estas questões da arte e da educação». Criou o projeto “Um artista aí em casa”, nas redes sociais com o mesmo nome, com materiais de educação pela arte para crianças dos três aos dez anos. Através de um pequeno livro e de atividades para fazer em casa, propõe às crianças (e aos seus pais) conhecer a obra de Amadeo de Souza-Cardoso, Monet, Mondrian ou Edward Hopper, só para citar alguns dos 36 artistas plásticos que já abordou. Agora, com o apoio de uma assistente que a ajuda a interpretar o que os outros dizem, dá formações a pequenos grupos de professores e já consegue fazer oficinas presenciais, o que lhe permitiu voltar a trabalhar diretamente com crianças.
Passados estes anos, não consegue ignorar a revolta quando pensa nas sequelas que o filho possa ter sofrido, com quem praticamente não teve contacto durante o seu primeiro mês de vida, e mesmo o impacto de todo o processo na filha mais velha. «Tinha o medo imenso de que o meu filho não criasse vínculo», confessa. «O pai costuma dizer que ele é o menino da mamã, porque faço tudo o que ele quer – assumo-o, é verdade, nós fomos privados de muito no início, tivemos de ir compensando. Ele está ótimo!».