Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
30 novembro 2023
Texto de Telma Rocheta (WL Partners) Texto de Telma Rocheta (WL Partners) Fotografia de Eduardo Martins Fotografia de Eduardo Martins

Torre de Moncorvo, vila de tradições

​​​​​​​​Entre a influência e a perseguição judaica, o caminho da Igreja Católica foi reconhecido pelo Papa Francisco, em 2022.​ A igreja passou a basílica.​

Tags
A basílica de Torre de Moncorvo erige-se como prova de que esta vila transmontana sempre teve aspirações a ser um polo importante na região do Douro. Madalena Leite, proprietária da Farmácia Leite, localizada junto ao centro histórico, entende que um passeio na terra onde nasceu deve começar neste majestoso edifício. «Todas as celebrações religiosas da família foram aqui, menos o meu casamento, com grande pena minha, porque o edifício estava em obras», recorda. A casa do seu avô ficava nas traseiras deste monumento nacional onde, em miúda, brincava no adro.


As ruas enchem-se de gente na festa medieval que, em 2024, se realiza entre 12 e 14 de abril

O técnico de turismo Manuel Diogo explica o motivo de, no século XVI, os moncorvenses terem teimado em construir uma igreja matriz grandiosa. «Até ao século XIX, Moncorvo tinha a maior comarca do reino. Isso garantia uma grande circulação de pessoas, bens e ideias», conta, «e esta igreja conferia essa imponência, digna da capital de distrito que nunca chegámos a ser». Em julho de 2022, a igreja que começou a ser construída em 1544 foi consagrada como basílica por decreto do Papa Francisco, o que representa um reconhecimento da importância da paróquia e do município.

Na basílica podem ver-se provas da presença judaica. A Inquisição instituiu-se em Portugal em 1536, no reinado de D. João III, pouco antes da primeira pedra do edificado ser colocada. Os judeus que se tornaram cristãos-novos fizeram grandes doações como prova do seu catolicismo. O tríptico de Santa Ana, de inspiração flamenga, foi oferecido por um famoso convertido. Num altar lateral, esculpido por artesãos locais, as roupas dos santos são claramente copiadas de vestes judaicas. «O São Jerónimo parece um rabino», mostra Manuel Diogo.


Em 1285, o rei D. Dinis concedeu foral à vila transmontana

Torre de Moncorvo é uma vila antiga, com foral concedido por D. Dinis em 1285, e o seu nome terá origem num senhor feudal, Dom Mendo Corvo. A antiga riqueza da terra é visível nas várias habitações senhoriais preservadas. Uma delas foi transformada em turismo de habitação: a Casa da Avó, no centro histórico.

A vila tem uma posição privilegiada, entre a rota para Foz Côa, Coimbra e Lisboa, a sul, Bragança, a norte, e Miranda do Douro, na fronteira com Espanha. Mas o desvio da estrada principal, nos anos 90, e o desmantelamento da linha do Sabor, convertida em ecopista, reduziu o número de turistas.

Na Páscoa e durante a feira medieval - que em 2024 se realiza de 12 a 14 de abril - a vila enche-se de gente. Madalena Leite refere que todos os habitantes levam estes momentos muito a sério. Na festa medieval, a população encarna o espírito da época: “É mesmo a rigor. Toda a vila está decorada e vestimo-nos a preceito”. Na montra, Madalena coloca uma serpente embalsamada pelo avô, que abriu a Farmácia Leite em 1936.


Madalena Leite, farmacêutica e natural de Torre de Moncorvo, no Museu de Arte Sacra

A Semana Santa é preenchida por várias procissões, com as figuras que saem do Museu de Arte Sacra e desfilam pelas ruas. O museu, contíguo à Igreja da Santa Casa da Misericórdia, vale a pena visitar pela riqueza do património. Na sala da Eucaristia estão expostos o cálice-custódia, que representa a torre da basílica, em ouro e prata, e que só abandona esta sala no dia do Corpo de Deus. A outra peça é um frontal de altar que terá sido feito por artesãos de Moncorvo.
 
A poucos passos, encontra-se o Núcleo Museológico Casa da Roda. É uma recriação da habitação onde se acolhiam ‘crianças expostas’, ou seja, nascidas de relações extraconjugais, filhos de mães solteiras, ou ainda de famílias pobres que não tinham condições para as alimentar. A coberto da noite, para garantir o anonimato, as mulheres colocavam o bebé num dispositivo na parede que rodava (a roda) e que assim acedia ao interior da casa. Lá dentro estava a “rodeira”, uma funcionária que retirava a criança e cuidava dela. A casa abriu em 1785. Nos cerca de 100 anos de existência há registos de mais de 3.100 crianças acolhidas.


Pormenor da Roda, dispositivo onde eram deixadas as crianças que as mães não podiam criar

Ainda nesta zona, mesmo nas costas da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, encontra-se a antiga sinagoga, é o coração do antigo bairro judeu. Há dois anos, foi aqui criado o Centro de Estudos Judaicos. Nele se conta o papel da Inquisição no extermínio da grande comunidade de judeus no nordeste transmontano. A fuga ou a conversão ao catolicismo eram as únicas escolhas. Sobre os que se convertiam, os ‘cristãos-novos’, pairava a desconfiança de estarem a praticar a sua antiga religião às escondidas. Bastava uma denúncia, mesmo anónima, ao Tribunal do Santo Ofício, para arriscarem a tortura e a pena de morte. Neste centro de estudos encontram-se réplicas da documentação da época, como por exemplo o inventário de bens de Pedro Henriques Julião, acusado de praticar o judaísmo.


Exemplar de um chapéu judeu, o quipá

Uma figura conhecida de Torre de Moncorvo era Violante Gomes, apelidada de Pelicana. O infante D. Luís, irmão do rei D. Sebastião, apaixonou-se por ela. O fruto desta relação, mais tarde conhecido como D. António, Prior do Crato, foi pretendente ao trono de Portugal. Um dos motivos para não ser aclamado foi a origem judaica da mãe.

A casa da Pelicana situa-se na rua dos Sapateiros, em frente ao posto de turismo. E corres- ponde a uma das nove estrelas de David que foram coladas no chão a assinalar os pontos que contam a história dos judeus em Torre de Moncorvo.​


Na mesma rua, a Quinta da Patela, uma chocolataria com produção certificada, continua a tradição da amêndoa coberta de Moncorvo. Em 2018, a especialidade recebeu a classificação de Indicação Geográfica Protegida (IGP) e em 2019 foi considerada uma das "7 Maravilhas Doces de Portugal". Andreia Póvoa, professora de Química e proprietária da casa, explica o processo moroso de produção: «As amêndoas já torradas são dispostas num alguidar de cobre que está sobre um braseiro para permanecer quente. A cada 15 minutos despejamos três colheres de calda de açúcar em ponto pérola e, nesse intervalo, as amêndoas são constantemente remexidas para a água evaporar». A pessoa que está a revirar as amêndoas tem de usar dedais para se proteger do calor, por causa disso as amêndoas adquirem os característicos picos. Este processo necessita de oito horas diárias, ao longo de uma semana de trabalho, para a amêndoa atingir o ponto de certificação. E embora a câmara municipal faça cursos para atrair pessoas para o ofício, é difícil assegurar mão de obra. A procura, no entanto, não falta.


A pessoa que vira as amêndoas usa dedais para se proteger do calor e, por causa disso, elas ficam com os característicos bicos
Notícias relacionadas