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4 abril 2024
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Espírito anfíbio

​​​​​​​O mar e a ria são centrais na identidade de Ílhavo. O elemento é a água.

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Para mim, Ílhavo é água e luz», diz sem hesitar a farmacêutica Ana Senos. «Somos um povo do litoral, não somos grandes montanhistas. Temos uma pequena ladeira no caminho para Aveiro e nem todos a sobem de bicicleta!». Nesta frase espontânea ficam feitas as apresentações. Mais forte do que a «rivalidade gostosa que apimenta a relação» entre as gentes de Ílhavo, Aveiro e das Gafanhas, é a identidade comum: a ligação à ria e ao mar.

Depois de uma vida a atender os utentes na farmácia, Ana confirma que quase todas as famílias estão ligadas ao mar e à pesca. No inverno, os homens ganhavam a vida na ria, pescando galeota (enguia pequena), linguado, robalo e choco. Entre o início da primavera e setembro, partiam rumo aos mares do Norte, para a campanha do bacalhau. Em 1960, um em cada três ilhavenses vivia do bacalhau. Nos tempos em que ainda se pescava à linha, cada homem passava oito a dez horas por dia sozinho no seu dóri (embarcação usada na pesca do bacalhau). Os navios de arrasto, que começaram a popularizar-se na década de 50, trouxeram outras condições, mas a atividade permaneceu dura, pelo isolamento, esforço físico e pelas condições climatéricas.


Foi para escapar à Guerra Colonial que Zacarias Paroleiro Santos trepou, em 1965, para o arrastão Santa Mafalda

Tudo isso se sente na visita ao Navio-Museu Santo André, atracado na Gafanha da Nazaré, que durante meio século galgou os mares do Atlântico Norte: Noruega, mar de Barents, Labrador, Gronelândia. Com o declínio da pesca do bacalhau, escapou ao abate e foi transformado em museu. Nas acanhadas camaratas com vários beliches cheira a mofo, há roupa espalhada nas camas, fotografias e calendários nas paredes, e maços de cigarros alinhados nas prateleiras. No camarote do capitão, o odor é a aftershave Denim, os chinelos de quarto repousam alinhados junto à cama, o WC é privativo. Os homens agrupavam-se em três categorias: oficiais, mestrança e marinhagem, e as hierarquias eram para respeitar. Impressiona o barulho ensurdecedor na casa das máquinas, as vozes dos homens que ressoam no ambiente frio do metal, saídas dos ecrãs de onde partilham as suas experiências.


A praia é ótima para fazer surf e bodyboard

Que homens eram estes e porque escolhiam esta vida? Faziam-no por ambição, para ganhar um pouco mais do que era comum à época, ou para fugir à tropa. Foi para escapar à Guerra Colonial que Zacarias Paroleiro Santos trepou, em 1965, para o Santa Mafalda, um arrastão igual ao Santo André. Ficou na pesca do bacalhau nove anos, em viagens que duravam três a quatro meses. Mal embarcava, já sonhava com o regresso. «Quanto mais depressa enchêssemos o porão, mais depressa voltávamos», resume o antigo maquinista. Garante que se dava bem com toda a gente, o que nem sempre seria fácil, com meia centena de homens embarcados em tão exíguo espaço.

Na memória ficou o dia do naufrágio, em 1971, quando o casco do arrastão Santa Isabel embateu num iceberg na Terra Nova. «Estava de serviço na casa das máquinas, só ouvi gritar: “Todos para cima”! Foi uma barafunda». Não houve mortos nem feridos, mas perdeu-se um porão cheiinho de bacalhau. «Se perdêssemos a vida era pior», diz, com sensatez.

No mar, uns salvaram-se da miséria e outros ganharam o dinheiro e o estatuto que faziam desfilar na cidade. «Ainda hoje a Avenida Mário Sacramento é conhecida por “avenida dos capitães”», conta a farmacêutica. A prosperidade económica trazida pelos “marítimos”, e as novidades, como a Coca-Cola, transformaram o território. A praia de pescadores da Costa Nova tornou-se a praia de veraneio das elites locais. «De um lado era Biarritz, do outro Saint-Tropez», brinca Ana, lembrando como os locais se referiam à localidade conhecida pelas casas pintadas com riscas verticais coloridas. A tradição vem dos antigos palheiros onde se guardava utensílios de pesca. O mais antigo é o do político e jornalista José Estevão, onde Eça de Queirós passava férias.


A tradição das casas pintadas na praia da Costa Nova vem dos antigos palheiros onde se guardava utensílios de pesca

«O verão na Costa Nova é sagrado», garante Ana. É um ritual para os naturais da região, mesmo os que partiram para as grandes cidades ou emigraram. De manhã vai-se de bicicleta à praia, ótima para o surf e o bodyboard; à tarde anda-se de barco à vela na ria. Ao fim do dia, quando a fome aperta, é hora de comer uma tripa (espécie de crepe), no quiosque do paredão. No café Atlântida, toda a gente «vem comer gelados e natas», e à noite as crianças brincam à solta no paredão. Ana gosta de ver as novas gerações a construir vivências «com o mesmo sentimento de liberdade com que nós vivemos».


Nos restaurantes locais encontra-se caras de bacalhau, cozidas ou fritas

Outra tradição ilhavense é comer bacalhau cozido com batatas ao jantar, todos os dias. «É ótimo, só se suja uma panela», ri-se a farmacêutica. Do bacalhau aproveita-se tudo e nos restaurantes locais encontra-se caras cozidas ou fritas, arroz de línguas, línguas fritas e feijoada de samos (bexigas-natatórias). Também são famosos a caldeirada e as pataniscas de galeotas, as padas (pão) e o folar de vale de Ílhavo.

Para além do mar, o outro elemento central na vida de Ílhavo é a fábrica da Vista Alegre, que celebra este ano o bicentenário. Até a Farmácia Senos, propriedade de Ana, nasceu por influência da fábrica. «Foi José Ferreira Pinto Basto, o proprietário, quem trouxe para Ílhavo um boticário, que abriu a farmácia», conta a farmacêutica.

​​A fábrica da Vista Alegre, que celebra este ano o bicentenário, sempre foi central na vida de Ílhavo

O Museu Vista Alegre revisita a história de uma marca que se manteve nas mãos da mesma família durante sete gerações, até ser adquirida pela Visabeira, em 2009. Lá encontramos os gigantescos fornos em tijolo de fabrico alemão, a história da descoberta do caulino, em 1935, que permitiu produzir, pela primeira vez, porcelana em Portugal, e as muitas coleções icónicas desta marca nacional. Na oficina de pintura, Anabela Capucho pinta com minúcia as flores que encimam uma jarra “Still Life”, vendida na loja por 3.850 euros. Trabalha na Vista Alegre há 44 anos e, como ela, a mãe, o avô e duas irmãs. Só o pai optou por outra vida: emigrou para a Venezuela. Anabela frequentou a creche da fábrica, depois a escola primária, a escola de desenho e de pintura.


A farmacêutica Ana Senos na oficina de pintura com Anabela Capucho, que trabalha na Vista Alegre há 44 anos

Começou como aprendiz, tornou-se pintora de primeira categoria. Adora o que faz, garante. «Esquecemo-nos do mundo lá fora». A sua história ilustra a de gerações de ilhavenses para quem a fábrica era mais do que o sustento: era um modo de vida. Quase não havia necessidade de sair do lugar da Vista Alegre. No bairro operário viviam centenas de trabalhadores, a fábrica oferecia creche e escola, posto médico e dentista, supermercado e até um teatro/cinema. «Ir aos bailes de Carnaval da Vista Alegre era uma instituição», recorda Ana. Foi a família Pinto Basto que criou a primeira corporação de bombeiros do país e que trouxe para Portugal a primeira bola de futebol.

A fábrica está no coração dos ilhavenses e não há casa sem uma peça Vista Alegre. Para muitos, comer em prato da Vista Alegre é como comer bacalhau: todos os dias.​