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7 junho 2023
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Movielight Fotografia de Movielight

Diz-me onde estás, falar-te-ei da tua saúde

​​Os locais onde se vive e se trabalha estão direta e indiretamente ligados à qualidade da saúde das pessoas. O tema foi a debate no sétimo aniversário do Programa Abem: Rede Solidária do Medicamento.​

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O código postal é hoje mais determinante na saúde das pessoas do que o código genético. A ideia, que tem ganhado força na literatura científica recente, foi trazida à Conferência Abem pelo geografo Miguel Padeiro. Sob o mote “Coesão Territorial e Saúde: Importância do Trabalho em Rede”, o evento, que se realizou em Lisboa no dia 25 de maio, marcou o sétimo aniversário do Programa Abem: Rede Solidária do Medicamento, e contou com o alto patrocínio do Presidente da República.

Na sua preleção, o professor associado da Universidade de Coimbra argumentou porque não tem dúvidas de que a geografia impacta a saúde, tanto à escala global como local, sendo vários os fatores que contribuem para que, no caso português, a esperança de vida nos Açores, por exemplo, seja de 78,5 anos, enquanto na Área Metropolitana de Lisboa se situa nos 82 anos. Ou que a mortalidade evitável seja mais elevada nas freguesias mais centrais da capital do país do que nas restantes. 


Segundo Miguel Padeiro, deixar de conduzir é o primeiro fator predisponente da depressão nos idosos, porque, frequentemente, é sinónimo de isolamento em zonas de urbanismo disperso 

Considerar que fatores económicos poderiam explicar estas diferenças é, segundo disse Miguel Padeiro, redutor. «Têm muito a ver com a capacitação que os territórios nos dão». O caso do acesso a cuidados hospitalares é claro: as pessoas que estejam em territórios menos densamente povoados estão sujeitas a percursos mais longos, aumentando, assim, a probabilidade de morte. Numa outra perspetiva, os densificados populacionais - isto é, as cidades, as vilas… -, quando marcados por um urbanismo fragmentado e disperso, como acontece, aliás, frequentemente em Portugal, são pouco estimulantes das relações sociais e os automóveis ganham predominância. Tornam-se quase obrigatórios, para possibilitar às pessoas a cobertura das distâncias entre a residência e o trabalho, os serviços, o comércio… «Deixar de conduzir é o primeiro fator predisponente da depressão nos idosos, porque, frequentemente, é sinónimo de isolamento», comentou. 
Os carros, além da poluição, ocupam espaço, estejam parados ou em movimento, promovendo, particularmente nalgumas zonas, um maior sedentarismo. É que alguém que viva num local sem áreas verdes, pouco arborizado, onde o exterior é dominado por parques de estacionamento, tem também pouca apetência para sair de casa, seja em caminhadas ou simplesmente socializar. Concomitantemente, o trânsito em zonas de residência, os passeios não caminháveis, as vias não cicláveis, oferecem pouca segurança, em especial a quem tem maiores dificuldades de mobilidade, caso dos mais velhos. 

 Para que a saúde faça parte de todas as decisões políticas, a governança tem de caminhar no sentido de uma articulação intersectorial e transdisciplinar, avisa o geógrafo

Se isto é uma fatalidade? Não, respondeu o geografo. Há trabalho que pode e está a ser feito, mas não é isento de consequências. Por exemplo, a automática valorização dos espaços intervencionados, que provoca um aumento nos preços das casas. Logo, quando o território melhora, a população muda, e a equidade ambiental permanece um tema.
Para o ultrapassar, a saúde tem de passar a ser considerada em todas as decisões políticas, defendeu o professor da Universidade de Coimbra. Algo que só se tornará viável quando o trabalho em rede for uma realidade, acrescentou. É preciso abandonar os modelos de governança atuais, estruturados em serviços que funcionam como silos. Os transportes, a ação social, a segurança pública, o desenvolvimento económico e a geração de empregos, o urbanismo e espaço público, a educação… todas as áreas têm de comunicar entre si, «e de caminhar no sentido de uma articulação intersectorial e transdisciplinar». Só assim será possível, na opinião de Miguel Padeiro, ter uma visão estratégica para a promoção da saúde, assente numa capacitação mais equitativa das pessoas.

 Margarida Pinto Correia conduziu o painel de debate, onde se discutiu a importância do trabalho em rede na geração de resultados positivos em saúde, face às condicionantes geográficas do território nacional

No debate que se seguiu, conduzido por Margarida Pinto Correia, o presidente da Câmara Municipal do Sardoal declarou ser muito positiva a sua visão do Interior. No que respeita à equidade na capacitação das populações, para Miguel Borges «interioridade não é sinónimo de inferioridade. Há muito trabalho feito nos últimos anos, ao nível da melhoria das acessibilidades, nos equipamentos desportivos, culturais, sociais, de saúde… Resiste, contudo, um problema: não temos quem prescreva a medicação». A falta de médicos é, para o autarca, uma questão estrutural que deveria ser encarada como uma emergência social, porque «há pessoas a morrer por falta de diagnóstico atempado», afirmou. Todas as medidas de atratividade destes profissionais fracassaram, inclusive as assentes na majoração dos rendimentos. «É hora de haver coragem política», exortou, defendendo que é essencial que sejam tomadas decisões como a introdução de mecanismos de prestação temporária obrigatória de serviço público após o término da formação dos clínicos, «até para ajudar as pessoas a fixarem-se nos locais». 

 Para combater a falta de médicos no Interior do país, Miguel Borges defende que se criem mecanismos de prestação temporária obrigatória de serviço público após o término da formação

Não é o dinheiro que faz as pessoas estabelecerem-se nos sítios, contrapôs Padeiro. «São antes as raízes familiares, a existência e a qualidade das escolas e de outros equipamentos de apoio, a rede de serviços e os empregos noutras áreas». Argumentos que acolhem junto de Paula Broeiro, que não podia discordar mais de Miguel Borges. «Estamos a desenhar políticas para jovens médicos com olhos de velhos», avisou a vice-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. O ponto, disse, é outro: «Temos de deixar de colocar o foco nos médicos sempre que se fala de cuidados de saúde. Isso tem de mudar». A médica argumenta que, em 1981, quando foram instituídos os numeros clausus, a quantidade de médicos diminuiu, mas cresceram e apareceram muitas outras profissões na saúde. Consequentemente, «o sistema mudou, e é absolutamente necessário que as visões políticas acompanhem essa mudança, colocando o foco nas equipas multidisciplinares e interdisciplinares». Além de que, sendo poucos, «os médicos não podem estar atafulhados de coisas que podem, e devem, ser feitas por outros profissionais». As farmácias, «que fazem parte do circuito natural dos doentes», deviam ser mais aproveitadas. «É de todo o interesse trabalhar em lideranças colaborativas ao nível, por exemplo, da gestão da medicação das pessoas. Diz-se muitas vezes que o SNS é uma peça-chave da coesão territorial, mas só o será verdadeiramente se estiver baseado na equipa e não no médico», enfatizou.

 A política tem de «deixar de colocar o foco nos médicos sempre que se fala de cuidados de saúde», e passar a olhar também para as outras profissões, sublinha Paula Broeiro

A realidade comunitária corrobora a ideia. «As farmácias são mais acessíveis para a população do que o SNS, especialmente no Interior do país. Estão mais próximas, têm maior disponibilidade e são elas que orientam, prestam os primeiros cuidados, fazem uma primeira triagem e encaminham as pessoas para os outros níveis de cuidados», testemunhou Olinda Marques, da farmácia Luz Marques, em Figueira de Lorvão, distrito de Coimbra. A dispersão territorial, o envelhecimento populacional, a desertificação das aldeias, em cima dos fatores já elencados pelos restantes participantes no debate, faz com que, de facto, reste a farmácia no apoio à saúde em muitas zonas do país. «Não só, mas em especial no Interior, somos o primeiro local a que as pessoas se dirigem». Por isso, defende a farmacêutica, é essencial que as farmácias sejam formalmente reconhecidas como muito mais do que são hoje, e que, em face do conjunto de dificuldades conhecidas, a comunicação com os médicos seja facilitada. «A rede tem preparação, capacidade e disponibilidade para uma intervenção mais alargada. São recentes os exemplos de projetos em parceria com o SNS, em que as mais-valias para as pessoas e para o sistema como um todo são inquestionáveis. Vejam-se os casos da entrega de medicamentos hospitalares nas farmácias, os testes rápidos ou a renovação da terapêutica crónica», apontou.

 «As farmácias são mais acessíveis para a população do que o SNS, especialmente no Interior do país», testemunhou Olinda Marques. «São o primeiro ponto de contacto da população com a Saúde»

Qualquer mudança social só será possível havendo uma congregação de vontades. A certeza foi deixada por Marta Albuquerque, da Portugal Inovação Social, que não tem dúvidas em afirmar que faz falta mais trabalho em rede, assente em mais parcerias virtuosas. O Programa Abem é disso um exemplo de sucesso. «Trata-se de uma iniciativa que não se limita a um território, que une a sociedade civil aos setores público e privado, e que já impactou positivamente 32 mil pessoas. Há muitas mais, o problema persiste. Conta a mitigação». 

 Para Marta Albuquerque, toda e qualquer mudança social só será possível se houver uma congregação de vontades

Num comentário final aos trabalhos, Tiago Correia, do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, defendeu que «o território importa à saúde, num grau de intensidade muitas vezes menosprezado». A organização dos espaços e da vida quotidiana impactam na prevalência de muitas doenças e no bem-estar, disse. O ruído, o tempo de mobilidade, o custo, a qualidade do ar, a dependência dos transportes particulares, a distância entre emprego-casa-escola ou a qualidade do edificado, «dependem da maior ou menor coesão territorial. Quanto maior for o desequilíbrio territorial da oferta de emprego de qualidade, dos serviços públicos e privados disponíveis ou do preço da habitação, mais lugares haverá desertificados e mais lugares haverá massificados».

 Tiago Correia considera que o Programa Abem identificou uma lacuna, «compreendeu o limite da ação do Estado e posicionou-se a partir desse limite, contribuindo para o SNS e para a Segurança Social»

A coesão territorial, a saúde e o trabalho em rede devem, assim, ser vistos como três vértices de um triângulo, advogou, em cujo centro estão os princípios da equidade e igualdade. «Quando os meios são mais limitados do que as necessidades, há que tratar diferente o que é diferente e priorizar aqueles que mais precisam. A alocação justa dos meios serve para nos tornar iguais nos direitos individuais». Assim se posiciona o Abem, no seu entendimento. «Estreita os laços deslaçados da coesão social. Os beneficiários melhoram a sua condição de saúde porque cumprem terapêuticas; percecionam a melhoria da sua condição de vida, porque têm mais dinheiro disponível para atender a outras necessidades básicas; e sentem dignidade no modo como são tratados». O programa identificou uma lacuna, «compreendeu o limite da ação do Estado e posicionou-se a partir desse limite, contribuindo para o SNS e para a Segurança Social. Desenhou uma resposta inteligente, simples e útil para os parceiros e os beneficiários, e age com transparência nos processos e nos resultados». Ao poder político cabe agora reconhecer os resultados positivos obtidos e fomentar a expansão de boas práticas para a totalidade do território. «Faltam 890.000 pessoas que todos os anos deixam de comprar medicamentos por falta de dinheiro. É para estes que é necessário perceber como dar uma resposta equitativa e igualitária».

 Ema Paulino sublinhou o contributo da solidariedade e capilaridade da rede de farmácias para os resultados alcançados pelo Abem

A conferência Abem foi encerrada por Ema Paulino, presidente da Associação Nacional das Farmácias, que sublinhou o contributo da solidariedade e capilaridade da rede para os resultados alcançados, e desafiou os decisores a apoiar o crescimento do programa, e por João Almeida Lopes, presidente da APIFARMA, que deixou o desejo de que no próximo aniversário do programa todos os números fossem maiores: mais parceiros e mais pessoas apoiadas.

 ​João Almeida Lopes encerrou os trabalhos com o desejo de que o Programa Abem possa crescer e alcançar mais pessoas com dificuldades no acesso ao medicamento


Programa Abem já poupou 24 milhões de euros ao Estado 

Entre maio de 2016 e dezembro de 2022, ao tornar possível às pessoas carenciadas o cumprimento da sua medicação, o Abem: Rede Solidária do Medicamento, permitiu ao Estado uma poupança calculada em 24 milhões de euros. Um valor que só tem em conta os episódios de urgência e internamentos diretamente evitados pela adesão dos mais de 32 mil beneficiários do programa às terapêuticas prescritas.

A conclusão é retirada da atualização feita ao Estudo de Avaliação de Impacto Social do programa, apresentado durante a conferência.

As contas fazem-se com uma distribuição da poupança de 1,8 milhões de euros em episódios de urgência; 1,3 milhões de euros em internamento de doentes com asma/pneumonia; 12,9 milhões de euros em internamento de doentes de psiquiatria; perto de 5,4 milhões de euros em internamento de doentes com enfarte agudo do miocárdio; e 2,7 milhões de euros no programa de tratamento da diabetes tipo 1. 

Para o alcance destes resultados concorreu um investimento de 7,5 milhões de euros, feito pelo programa ao longo da sua existência. Caso o Abem fosse alargado aos restantes 920 mil portugueses que todos os anos deixam de comprar os seus medicamentos por não os conseguirem pagar, com um investimento de 176 milhões de euros os resultados de poupança do Estado agora apresentados ascenderiam aos 711 milhões de euros.
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Segundo Maria João Toscano, 57% das pessoas apoiadas pelo Programa Abem fazem parte da população ativa, o que faz deste um tema não só do âmbito da saúde, mas um problema social

Durante o evento, que teve como mote ao debate de ideias o tema “Coesão Territorial e Saúde: Importância do Trabalho em Rede”, a diretora-executiva do programa sublinhou que, «por cada milhão de euros investido no Abem, existe uma poupança potencial de quatro milhões de euros para o SNS». Estimativas que não tiveram em conta o impacto económico e social das baixas médicas evitadas, da diminuição do absentismo laboral e do absentismo escolar. Números que certamente se fariam refletir com destaque, dado que mais de metade das pessoas apoiadas, 57%, fazem parte da população ativa. «Este é um problema que não se cinge ao âmbito da Saúde. É um tema social relevante e que deve ser encarado. É preciso dar dignidade a estas pessoas que, estando a trabalhar, não conseguem, com os seus rendimentos, fazer face às despesas», acrescentou Maria João Toscano, lamentando a ausência de responsáveis do Governo na sessão.