RFP – A mercadejar a fé.
AA – Também há muitos crentes com outra postura. Sabe que a fé não exclui a razão. Mas a razão, escavada até ao fundo da nossa consciência, pode excluir a fé nesse sentido mais corrente. Eu tenho fé, mas é fé no homem, fé numa sociedade melhor, fé no devir colectivo.
RFP – No momento em que conseguiremos ser uma fraternidade.
AA – A utopia maçónica é justamente a criação da fraternidade universal. Tenho fé em que a sociedade marchará para patamares cada vez mais elevados de dignidade e igualdade. Não há nenhuma incompatibilidade entre valores cristãos, socialistas e maçónicos. Mas a utopia é que move o Mundo.
RFP – O que aconteceu na Guerra Colonial de modo a provocar essa alteração em si?
AA – Não sei precisar, mas até já escrevi sobre isso. Estive um ano em Ambrizete, sempre a ir à missa. Um dia, já em Nambuangongo, levantei-me para ir à missa. E como uma luz de uma vela que se apaga, mesmo sem haver brisa, concluí que não tinha razão nenhuma para ir.
RFP – Mas houve algum episódio de guerra traumático?
AA – Não, nada. Simplesmente, perdi a fé. Talvez tenha havido circunstâncias, mas nenhuma que eu possa isolar. Sabe, nós somos movidos por águas interiores, de que às vezes não nos apercebemos, mas que explicam os movimentos à tona da água. E eu perdi a fé como uma vela que se apaga. Mas não tenho problema nenhum. Sou igual, sou o mesmo. Só não vou à missa.
RFP – Como entrou para a Maçonaria?
AA – Foi por convite do Fernando Vale, médico e meu mestre, em 1972, que muito me honrou. Ele já me tinha levado, em 1965, para a Acção Socialista.
RFP – Pode explicar a um profano o que um homem precisa de fazer, o que muda na sua vida, qual é a construção, para chegar a Grau 33 e a Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano?
AA – Acreditaram em mim, ter-me-ão reconhecido algum mérito. O mérito que eu tive foi o de acreditar no futuro, que podemos melhorar a vida das pessoas, acreditar que é possível reduzir as injustiças e as desigualdades, já não digo acabar com elas. Foi sempre esse o rumo da minha vida, tanto no Partido Socialista, como na Doutrina Social da Igreja, como na Maçonaria. Eu sou assim antes de qualquer coisa, talvez por ser poeta, o poeta tem uma certa sensibilidade. Eu acredito que é possível mudar o Mundo, acredito na dignidade intrínseca profunda da pessoa humana. É por isso que sou contra as injustiças, as prepotências, a exploração do homem pelo homem.
RFP – Portanto, o menino da Cumieira é anterior a essas opções todas e explica o seu percurso.
AA – Sim, sim. Precisamente.
RFP – Mas foi precoce, mesmo para a época.
AA – Comecei a assinar o jornal República com 14 anos. Havia gente que ia para a escola descalça. E gente que morria sem dinheiro para chamar um médico. E eu pensava: Isto não está certo. E quando comecei a ver que as coisas não estavam certas, comecei a rebelar-me. Comecei a ler muito e a ser o que sempre fui: republicano, socialista.
RFP – E revolucionário, não é?
AA – Sou revolucionário pela palavra. Aliás, quando apresentei o projecto do SNS na Assembleia da República, chamei-lhe revolucionário, porque ele queria transformar radicalmente o que existia.
RFP – O problema é que a corrupção e o tráfico de influências são fenómenos que também atingiram a Maçonaria.
AA – A maçonaria devia ser o último reduto em que a fraternidade pudesse ser infiltrada por outras lógicas. Aconteceu depois do 25 de Abril o que já tinha acontecido após a proclamação da República. Para se aceder a um cargo político era importante ser da Maçonaria. Disso resultou a entrada na Ordem de pessoas que não tinham preparação. Houve menos cuidado na selecção das pessoas. Hoje há várias maçonarias e não podemos falar delas por igual, embora o que se passa em cada obediência afecte as outras. Mas isto é produto do tempo. Vivemos um tempo em que os valores da dignidade humana foram postos de parte por esta corrente negocista, egocêntrica.
RFP – Já a comparou à peste negra.
AA – Sim, escrevi isso sobre este neoliberalismo selvagem que nos ataca. Eu defendo a igualdade de todos perante a lei e a comunidade, a igualdade no acesso aos direitos fundamentais, de acesso à educação, à saúde, à cultura. Por isso defendo um Estado social de direito, forte e interventivo. Porque a liberdade desacompanhada dessa igualdade permite sempre o abuso do fraco por parte do forte. Só há liberdade entre iguais. Não basta falar da liberdade dos mercados, de capitais. A liberdade do homem só se garante pelo respeito dos seus direitos fundamentais. Aqui é que se faz a clivagem entre direita e esquerda. Uma certa direita, do neoliberalismo, valoriza apenas a liberdade. Criticam o Obama porque acham que cada um deve ter a liberdade de morrer sem tratamento médico, querem um sistema em que os fortes passem à frente dos fracos.
RFP – O senhor continua a ser dos maiores defensores de um serviço público de saúde.
AA – Estarei sempre na primeira linha desse combate. A concepção dos neoliberais é a de que o Estado se deve afastar de todas as prestações sociais, deve deixar tudo ao mercado. Na saúde, por exemplo, admitem que o Estado tenha umas coisinhas mínimas para os muito pobres. Eu não aceito isso, nem me resigno, porque não defende a dignidade das pessoas, que só pode ser garantida pela igualdade no acesso. Eles entendem que a saúde é um negócio, que é uma mercadoria, quem tem dinheiro que a pague. Essa concepção é aviltante para a dignidade humana. Só um Estado forte pode garantir igualdade de direitos fundamentais. Depois, a partir desse patamar, já é possível que o mérito e as capacidades de cada um ditem algumas diferenças, mas sem ferir a dignidade de ninguém, nem esse equilíbrio entre todos. Felizmente, há a direita social. Veja o Papa Francisco, que diz que esta economia mata.
RFP – E o senhor não se conforma.
AA – Jamais. Hoje o que conta é o ter, não é o ser. Já os meus avós me diziam: «Filho, olha que vale mais o ser do que o ter». Procurei conduzir-me por esses valores. Eles não dão é o resultado material que muitos ambicionam. Nunca precisei disso. Sinto-me rico porque tenho muitos amigos. Mas olhe que há muitas pessoas como eu, não são é conhecidas. Repare no caso do João Almiro, que fez aquela obra extraordinária e fora da terra dele quase ninguém sabia.
RFP – O que o marcou mais na vida pública?
AA – Há dias pediram-me para fazer esse exercício, de escolher os três grandes momentos da minha vida. Pondo de parte os filhos e as coisas familiares, que reservo para a intimidade, os momentos luminosos da minha vida, por ordem, foram os estes: A fundação do Partido Socialista. Chorei. A aprovação da Constituição. E a aprovação da Lei do Serviço Nacional de Saúde.
RFP – Mas o senhor teve grande protagonismo noutras coisas importantes, como por exemplo chegar a Grão-Mestre…
AA – Tive e tenho grande honra nisso, mas não teve a mesma importância.