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1 fevereiro 2024
Texto de Teresa Oliveira (WL Partners) Texto de Teresa Oliveira (WL Partners) Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Alegria no caos

​​​Com​ dores insuportáveis e dificuldades motoras, Lourenço Madureira Miguel foca-se no que pode controlar.​

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Aos 15 anos, Lourenço foi visitar a irmã, recentemente operada. Ele próprio «estava com sintomas de uma apendicite», que ignorou, recorda. Só se preocupou consigo mesmo depois da visita. «Fomos ao Hospital de São José (em Lisboa), mas pela idade teria de ir para o Hospital Dona Estefânia. E disse ao meu pai: “Vamos a pé”». Entre o quilómetro e meio que separa os dois hospitais, somou à apendicite uma peritonite (inflamação da membrana que reveste interiormente as paredes do abdómen). E as dores? «A dor sempre foi tolerável e algo de que me consegui abstrair muito facilmente».


Apesar das melhorias, ainda precisa de ajuda para se deslocar

Atualmente, o que o aflige é o sofrimento incapacitante. Toma 25 comprimidos por dia e, apesar disso, continua «com muitas, muitas dores», que só o deixam dormir duas horas por noite, «se tanto». O que sucedeu para que Lourenço, estudante de Medicina, saudável, cinturão preto de judo, passasse a sofrer estas dores tão intensas e a ficar com parte do corpo paralisado? «Foi muito estranho» o que aconteceu depois de ter sido operado a uma varicocele (varizes das veias que drenam os testículos, geralmente benignas, mas que, no seu caso clínico, exigiu urgência em operar). Ficou com dores na coxa e na virilha, mas «nada do outro mundo. No dia seguinte até fui animar um campo de férias, tinha corrido aparentemente tudo bem», recorda. Afinal não estava tão bem assim, porque precisou de ser operado outra vez.

Inicialmente associou as dores, agravadas na segunda cirurgia, ao período normal do pós-operatório. A razão era outra, como se percebeu com a sucessão de consultas médicas posteriores. Da cirurgia inicial resultaram «algumas lesões na zona da virilha e coxa esquerdas, desencadeando novas lesões nos nervos sensitivos, o que gerou um aumento da intensidade da dor, a cada dia mais insuportável», explica. Perante a dor física, o cérebro respondeu de forma implacável: «A dor vai para o cérebro. O cérebro recebe a dor. Sendo muito forte, o próprio cérebro desliga os outros nervos, especialmente os motores».


A fé e a alegria são componentes essenciais na vida de Lourenço



De um momento para o outro, Lourenço começou a ter falta de força total na perna esquerda, que passava ao fim de dois minutos. Mais tarde, a perda de força noutras partes do corpo e, durante mais tempo, chegou ao ponto de «a perna esquerda quase deixar de funcionar. Tinha apenas um terço da força dos braços», de tal modo que deixou de conseguir escrever. «Continuo sem conseguir.  Metade da minha cara chegou a estar quase paralisada durante grande parte do dia. Faço ginástica respiratória, porque o diafragma funciona muito mal».

A causa das dores demorou a ser percebida, porque não há um caso relatado igual ao seu, «desta forma, muito menos». Quem pela primeira vez identificou o tipo de doenças onde a sua se insere foi uma neurologista recentemente regressada de Londres, para onde foi estudar esta temática. Hoje é a principal neurologista de Lourenço em Portugal.

«Ela não estuda a minha doença em específico, mas o grupo destas doenças e este pensamento de perceber como o cérebro reage à dor», esclarece. Em março, na «fase mais triste» da jornada, a médica, «a pessoa mais entusiasta», disse-lhe não saber mais o que fazer: «“a doença está a avançar de forma cada vez mais rápida. Tudo o que fazemos é só para atrasar o seu avanço. A culpa não é sua, a culpa não é da nossa equipa médica. A verdade é que a ciência não está preparada para si”».


Depois de um tratamento em Londres, recuperou a mobilidade

Lourenço não iria desistir sem lutar e insistiu em saber se no estrangeiro haveria outro tipo de respostas. A sua neurologista acabou por encaminhá-lo para um centro de investigação recém-criado em Londres, sem qualquer apoio do Estado português. «Graças a Deus que tentámos», exclama. Ali, o trabalho começou nas tarefas básicas, tentando reeducar o cérebro a comandar o corpo, apesar da dor. Funcionou. Neste processo de cinco anos, foi a primeira vez que houve melhorias, o que «é espantoso só por si, mas, por outro lado, as dores estão completamente descontroladas e como são a força motriz da doença…», relata. «Sou o caso de maior sucesso, mas também o mais instável», resume, aceitando as dificuldades.


Sentiu necessidade de escrever um livro em que relata as suas reflexões sobre a vida

Vive bem com esta instabilidade.  A sua fé católica levou-o, aos 11 anos, a anunciar que não tinha medo da morte. «Se eu digo que acredito em Deus e no céu e numa vida melhor, como posso temer algo que será ainda melhor que isto? Não faz sentido». Por outro lado, pensa que quanto mais uma pessoa estiver «bem resolvida com este fim da vida, mais leveza existe no seu viver de cada dia». No meio deste processo, escreveu um livro baseado nas reflexões e notas que vai tomando ao correr dos dias. Vivam «cada momento, não como se fosse o último, mas como o principal, pondo em perspetiva as coisas e dando este valor à vida, e olhando para a vida como uma missão que temos e acabamos por viver», propõe aos leitores de “Vida entre Linhas”. Quanto a si mesmo, uma das componentes da sua missão é lutar por melhores acessibilidades, para que qualquer pessoa possa ter autonomia em deslocar-se, sem que alguns sejam travados pelas múltiplas barreiras existentes.

Ao fim de cinco anos, sobra-lhe esperança, fé e confiança na ciência, mas, sem ilusões, diz-se preparado para encarar os desafios que a vida lhe apresentar. «A minha felicidade não depende disso. Talvez seja, às vezes, o que choca mais as pessoas», o que as leva a pensar que «é louco, porque vive desta forma».

Relembra uma história que representa bem como vive: tinha recebido uma má notícia e estava a contá-la à mãe. Perante o desconsolo dela, pediu-lhe para não se preocupar e garantiu-lhe que é feliz e está feliz. «A verdade é que eu nunca controlei se dói mais à noite ou de dia, se o corpo vai deixar de funcionar durante três minutos ou três horas», descreve. «A única missão que eu sinto que é a minha, que está sob o meu controlo, é encontrar a alegria no meio do caos. É conseguir mostrar que é possível que essa alegria exista no meio de cada momento de caos que se verifica na nossa vida».

 

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