Não vai há quinhentos anos, o frade António Ribeiro cansou-se de viver em clausura no Convento de S. Francisco, de Évora. Ele já não viu três irmãos franciscanos transformar a camarata onde dormiam na famosa Capela dos Ossos. Meteu pés e mulas ao caminho, cruzou o Tejo de barcaça e só assentou depois de trepar a colina de Santa Catarina, zona fidalga abraçada pela muralha fernandina. Nunca despiu o hábito clerical nem aliviou a corda à cintura. Começou foi a cuspir fininho em voz alta, à fadista. José Cardoso Pires, com precisão de relojoeiro, chamava cuspir fininho ao linguajar desafiador dos lisboetas mais típicos. Frei António foi precursor dessa arte travessa de afiar a língua: fazia versos satíricos e recitava ao ar livre, imitava vozes e figurões, gozava com costumes e grandezas. Não lhe deu para as mulheres, só para uns tragos de vinho na taberna de um tal Gaspar Dias. Não se sabe ao certo qual deles dava pela alcunha:
– Canta para aí, ó Chiado.
Parece que respondiam ambos. E foi assim que um taberneiro e um agitador de rimas deram nome ao bairro fino. O terramoto de 1755 e o incêndio de 1988 facilitaram a transição geracional do espaço urbano.
As tragédias, afinal, foram colossais dores de parto. Permitiram ao Chiado renascer consoante as épocas. Por exemplo, agora: Lisboa vive ocupada por uma nuvem permanente de turistas, não podia conservar no coração um bairro de tertúlias. O Chiado passou a ser uma praça do mundo.

As grandes marcas multinacionais, de luxo ou consumo massificado, abriram portas nos antigos armazéns reconstruídos, assim como por toda a Baixa. Os escritores levantaram-se das mesas. A força do comércio, que ergue e destrói coisas belas, empurrou-os para todo o lado: livrarias, numerosos alfarrabistas, clubes como o Eça de Queiroz e o Grémio Literário. Os justamente alcandorados a “vultos literários” levaram um banho de bronze dos vindouros: Eça abraça uma musa num jardim de palmeiras, Pessoa pensa em nada na esplanada d’A Brazileira e Camões controla tudo a 12 metros de altura. No meio deles, noutro pedestal de pedra, António Ribeiro, o tal poeta satírico. Puseram-lhe à porta uma saída do metropolitano, mas a maioria tropeça nele sem o ver, quanto mais ouvir.
– Alguém viu por aí o Chiado?
A taberna do Gaspar também se perdeu no tempo, mas por aqui ainda há o restaurante certo para cada visitante.
Porta sim, porta não, o vizinho Bairro Alto chama para a mesa. Arroz de línguas de bacalhau no Fidalgo, pastéis de massa tenra no Sinal Vermelho, lampreia no 1.º de Maio, tudo almoços de chorar por mais. Para jantares inesquecíveis, o Duplex. Fica no Cais do Sodré, local especializado em cocktails de criaturas do lado errado da noite com juventude em festa, de copo na mão pelas ruas.
Maria da Luz Sequeira é militante fervorosa do comércio tradicional. Não põe os pés em grandes superfícies ou cadeias de supermercado. Antes frequenta mercearias, lojas de frutos secos, chá e cafés de balão. Também a fascinam as casas com tradição em adereços exclusivos. Na Rua do Carmo, entrámos no Ulisses, a «última luvaria nacional». Fabrico artesanal, a rimar com as melhores peles. Ao balcão, Carlos Carvalho recebe com ar de riso.
– Vem cá toda a gente de bom gosto.
Luvas tão belas não calçam crises. A metáfora também serve, à medida, a chapelaria Azevedo Ruas. No Rossio desde 1886, há cinco gerações na mesma família. Vendeu cocos e cartolas a milhares de cavalheiros. Ainda hoje fornece chapéus de senhora quando o Governo toma posse ou há casamentos de revista. À esquina da chapelaria, paragem obrigatória:
– Três com elas, pago eu.
A ginjinha! Ginginha é a Ginginha do Rossio. A nossa anfitriã saboreia o copinho e o passeio. Sem pressa, a coleccionar destinos. A tarde vai dar à Confeitaria Nacional, a mais antiga de Lisboa. Doces e chocolates de fabrico caseiro. Dispostos em frascos de vidro e elegantes tabuleiros parecem peças delicadas de ourivesaria. A maior tentação da farmacêutica é o bolo-rei. Fundada em 1829, a Nacional fornecia a Casa Real por alvará de D. Luís I e gosto de D. Maria Pia. Sempre houve em Lisboa mulheres a preferir o que é bom.
Lisboa, tal como existe, é um privilégio nosso. Um dia, já se sabe, virá outra vez abaixo para renascer das cinzas. Milhares de edifícios da capital foram construídos ou reabilitados sem o cuidado de os preparar para o regresso, certo mas sem hora marcada, do grande terramoto. No miradouro da Graça, pregados a um muro, os versos de Sophia de Mello Breyner gritam à paisagem.
Lisboa cruelmente construída
Só responde beleza. A luz do Sol revela a absurda beleza de uma cidade que é um arco-íris de monumentos, vaidades, cores, jardins e casas podres.
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro

Ali perto, outro miradouro. Da Senhora do Monte a vista cresce para Norte. Cresce também o estonteante mosaico de estilos. O vento semeou-os no espaço urbano, sem padrão nem regra. O olhar viaja no tempo aos repelões, pára e arranca nas épocas como as carreiras do eléctrico. O 28 vai cheio de turistas, carteiristas e alguns lisboetas, Graça abaixo, Chiado acima. Às terças e sábados, muitos apeiam-se na Feira da Ladra, uma orgia do comércio a céu aberto. Maçanetas de porta, azulejos, discos, roupas, farrapos, rádios de todas as épocas, peças e cacos, espólios de lata e de museu. O 28 suspende a marcha em frente da Igreja de S. Vicente de Fora e vê-se logo o rebuliço. Só duas paragens depois o guarda-freios grita, para praticar línguas.
– Castelo, castle, château.
Está escondido na colina, precisa de aviso. Da Cerca Moura ou do Miradouro de Santa Luzia o que se vê é o rio. Um vai e vem de barcos cacilheiros e paquetes de cruzeiro descomunais atracados em Santa Apolónia. O mártir S. Vicente entrou em Lisboa deitado numa barca, mas aqui está bem de pé – é maior do que toda a gente. Corvos já é raro, mas pousam nele muitas pombas de Lisboa. O padroeiro abençoa a descida, por escadas e ladeiras, a Alfama e à Mouraria. Becos, vielas, cheiros a tudo, pregões e escaramuças, caça ao turista e casas de verdadeiro fado vadio, como a Tasca do Chico ou a Mesa de Frades.
Quem segue viagem senta-se nos lugares que ficaram livres. Vem aí a Igreja de Santo António, a tal dos casamentos, depois a Sé e a paragem na baixa pombalina. O arco da Rua Augusta abriu ao público, com vista para a Praça do Comércio. Este culto das varandas e miradouros é sintoma da grande doença colectiva: a obsessão de meter Lisboa inteira olhos adentro.
Digo o nome da cidade
- Digo para ver.
No 28, a obsessão não dá azo a fugas. Quem sai na Baixa pode fugir ao arco e subir a pé em sentido contrário. Dez minutos e novo convite, para ver a paisagem do avesso. Um ascensor, a que os lisboetas chamam “elevador da Glória”, leva-nos ao Miradouro de S. Pedro de Alcântara. Aqui, colina da Graça e Costa do Castelo são os vizinhos da frente. Seguir viagem é a terceira opção, até à sede da ANF. Não dá para fechar os olhos. Mesmo em frente fica o Miradouro de Santa Catarina. O Tejo deslumbrante parece à distância de um mergulho.