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29 junho 2023
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Ricardo Castelo Fotografia de Ricardo Castelo Vídeo de Nuno Santos Vídeo de Nuno Santos

Viagem ao imenso Barroso

​​​​Montalegre é o ponto de p​​​​artida para visitar o Gerês transmontano.
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Quase a chegar a Montalegre, a pressão nos ouvidos assinala a altitude: a vila barrosã fica a quase mil metros, isolada entre montes, sob um clima austero. A imagem perfeita obtém-se do novíssimo Miradouro da Corujeira, com as serras do Larouco e do Gerês ao fundo e a vila por detrás da floresta de carvalhos, com o imponente castelo medieval, onde as crianças brincam na neve no inverno. A vila transmontana é um símbolo de resistência, visível na solidez do granito que reveste casas e ruas e no caráter de quem lá vive. 


A vila transmontana é um símbolo de resistência, visível na solidez do granito

À resistência junta-se o calor das madeiras e do «coração grande de quem gosta de dar o que tem, sem inibições de que a casa não seja rica ou a mesa farta», diz Bárbara Vaz Pereira. Quando partiu para estudar Medicina Veterinária julgou que não voltaria. Hoje reconhece aqui o seu «cantinho». Nas ruas de Montalegre cumprimenta toda a gente e nada lhe dá mais prazer do que percorrer de jipe as «paisagens incríveis» até às aldeias onde, depois de sanear os animais, é convidada a partilhar pão de centeio, chouriço e salpicão, um copo de vinho e um pouco de conversa. Bárbara gosta desta «gente que gosta de gente», e é neste ar puro e calor humano que quer ver crescer as filhas. «Vale muito», garante.


O Ecomuseu de Barroso, no centro de Montalegre, tem uma sala que homenageia o padre Fontes, o «grande embaixador» da região  

“O país barrosão é imenso”, afirma uma inscrição no Ecomuseu de Barroso, que funciona como «porta de entrada para conhecer estes mais de 800 m2 de território», como diz Nuno Otelo Rodrigues, responsável pelo Ecomuseu. Ali se homenageia o «grande embaixador» padre Fontes, a terra, a água, a gastronomia e as tradições destas aldeias profundamente comunitárias, onde tarefas e bens são partilhados. Desde a vezeira (prática ancestral de pastoreio comunitário), à matança do porco, passando pela cegada e a malhada (corte e descasque do centeio), o forno do povo e o boi do povo, esse «deus de cornos e testículos», nas palavras de Miguel Torga. As chegas de bois eram verdadeiras disputas entre aldeias. «O boi vencedor era motivo de orgulho e poder», explica Bárbara. ​


Na Oficina do Burel criam-se artigos de moda com a artesanal lã de ovelha

Nesta terra de emigrantes, há quem se ocupe a dar vida nova às tradições. Na Oficina do Burel, Carlos Medeiros idealiza e confeciona artigos de moda com a artesanal lã de ovelha usada nas capas dos pastores.


Pitões das Júnias, no Parque Nacional da Peneda-Gerês, é uma das aldeias a visitar 

Coberta de neve, Pitões das Júnias é um postal imperdível, mas a aldeia é bonita todo o ano, com o contorno escarpado da serra do Gerês e o rio Cávado ao fundo. Integrada no Parque Nacional da Peneda-Gerês e colada a Espanha, é procurada pela cascata de 30 metros e pelo mosteiro de Santa Maria das Júnias, que foi retiro espiritual de monges cistercienses.


O mosteiro de Santa Maria das Júnias foi retiro espiritual de monges cistercienses

Chega-se ao mosteiro do século XII por um carreiro coberto por grandes pedras, que desce a encosta. É por ali que passa o andor na romaria de 15 de agosto, ao som da água do ribeiro de Campesinho. Cheira a terra e Natureza. No vale, junto a um carvalho centenário, encontramos a igreja encimada pelo campanário e um relógio de sol, o antigo cemitério e as ruínas do mosteiro. Além da paz imensa, nada aqui faltava, até um moinho de água para moer a farinha. Mesmo ao lado, uma placa anuncia o Trilho do Pastoreio, um dos muitos que correm a serra. 


A veterinária Bárbara Vaz Pereira aprende como funciona o forno do povo de Pitões das Júnias com a padeira Gracinda Marinho 

Bárbara sente um carinho especial pela aldeia: Pitões das Júnias era a terra do avô, médico que ia de cavalo pelos montes dar consultas e recebia em casa os doentes. «Não se negava a nada nem a ninguém», conta com orgulho. À entrada do forno do povo, enegrecido por dentro, espera-a Gracinda Marinho, para mostrar o recurso comunitário que, após anos encerrado, voltou a ser o ponto de encontro nas festas da terra. «Tenho mesmo orgulho de dar vida ao forno do povo», diz a padeira da aldeia, cuja história espelha o fado de muitos transmontanos: tornou-se pastora aos dez anos, em França trabalhou nas limpezas e o marido na construção, regressou por amor à terra, já com a ideia de criar a padaria. «O meu coração pertenceu sempre aqui», assegura.


A famosa posta barrosã é um dos pratos típicos 

 


De Montalegre a Fafião são 55 quilómetros, uma viagem longa por estradas sinuosas que cortam a montanha pedregosa, revestida a giesta amarela. Por vezes avistam-se garranos, as vacas pressentem-se no rasto de bosta estrada fora. Estamos na terra da raça barrosã, de olhos doces debruados a negro e grandes cornos ondulados. Este Gerês transmontano é diferente do minhoto, mais rude, seco e selvagem. À passagem pela barragem de Paradela, lê-se no muro: “Minas não!”, a deixar claro que a população está contra a exploração de lítio, que não vai trazer emprego nem renda a quem lá vive. 


Fojo do Lobo de Fafião, uma armadilha para onde os lobos eram atraídos em batidas e mortos

Junto à aldeia de Fafião, um estranho muro triangular encerra a estória da luta ancestral entre homens e lobos. «O fojo dos lobos era uma máquina de guerra contra o lobo ibérico», conta Júlio Marques, da associação Vezeira. Foi há 500 anos que homens e mulheres ergueram com as próprias mãos esta armadilha, para a qual atraiam os lobos em batidas, usando paus, pedras e o barulho de tachos, até entrincheirar os lobos, que caiam num buraco com quatro metros. A morte do macho alfa e a dispersão da alcateia garantiam paz à aldeia por largos meses. 

Fafião chegou a ter mais de mil cabras, nem por isso se pense que havia abundância. Os ataques dos lobos representavam pobreza e ainda hoje dói aos pastores quando o lobo ataca. No ano passado, foram 80 as cabras levadas pelos 25 lobos das duas alcateias da serra do Gerês. A Argentino Matos, tornado pastor após a reforma, revolta que o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas nem sempre assuma as indemnizações. «Criado a leite de cabra», é um dos vezeireiros que sobe a montanha para levar o gado a pastar. Por cada 20 cabras que possua, um homem oferece um dia de trabalho. Argentino sai pela fresca, caminha três horas e meia, «devagar, para que comam muito». Enquanto as pernas permitam, não quer outra vida. «Ir para a serra é a melhor coisa que pode haver», sorri. 

O Fojo dos Lobos de Fafião funcionou até 1948. «Não é motivo de orgulho, porque muito lobo morreu aqui, mas também não é motivo de vergonha», diz Júlio, que sabe do perigo das visões extremistas. É para aproximar pontos de vista que a associação Vezeira organiza o Festival Aldeia de Lobos, com exposições de arte, teatro, tertúlias e música noite dentro, num palco montado no fojo. O próximo é a 7 e 8 de julho. 


Do miradouro em Fafião obtém-se uma vista a 360º sobre a serra do Gerês e o rio Cávado

Do miradouro construído entre duas fragas altíssimas, Júlio aponta os limites dos concelhos vizinhos: Vieira do Minho, do outro lado do Cávado, Braga, Montalegre. Conta estórias de antigas rivalidades entre aldeias, pela água e pelo território de pastoreio. Aponta os prados na serra, lá longe. Foi na montanha que o portuense que trabalhava em marketing perdeu as vertigens. No Ecomuseu Serra e Vezeira, polo de Fafião, conduz visitas guiadas em inglês. Está convicto que o turismo sustentável, «gerido por quem é da terra», é o caminho para inverter a desertificação. No largo da aldeia pinga água na fonte comunitária, cantam galos, o sino eletrónico assinala o passar do tempo. Há vida aqui.

 

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