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11 novembro 2019
Texto de Maria João Veloso Texto de Maria João Veloso Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O doutor dos desafios

​​​A admiração pelos profissionais de saúde fê-lo decidir seguir Medicina.​​​​​​​​​​​

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Bernardo Pinto, 25 anos, optimista por natureza, está confiante. Em breve exercerá Pediatria ou Medicina Geral e Familiar. Este Novembro é o mês das grandes decisões: faz o exame, escolhe a especialidade e começa a preparar uma viagem a Miami com colegas de curso. Vai realizar um par de sonhos: visitar o Disney World e assistir a um jogo da NBA (liga masculina norte-americana de basquetebol).

O futuro sorri-lhe porque nunca desistiu. Por trás da secretária, com a bata branca vestida e o estetoscópio à volta do pescoço, não há nada que denuncie que tem passado por um rol de dificuldades. A não ser um par de canadianas.


À secretária, com a bata branca e o estetoscópio à volta do pescoço, nada denuncia e as dificuldades que tem​

Bernardo nasceu com espinha bífida, malformação congénita ao nível do tubo neural e da medula óssea. A doença condiciona a nível neurológico e motor. Com mobilidade mais reduzida do que as outras pessoas, anda com auxiliares de marcha: a cadeira de rodas para distâncias maiores e as muletas para o trabalho.

Tem uma grande paixão por automóveis. No dia da reportagem chegou a bordo do "Mini" que usa no dia-​a-dia. Mas também gosta de acelerar no seu "Porsche" desportivo. Na mala do carro está arrumada a cadeira de rodas para qualquer emergência. Sabê-la ali dá-lhe confiança, mas não parece precisar dela. Tirou a carta de condução no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. Conduz carros de caixa automática com a perna esquerda, e por isso o acelerador está desse lado, ao invés dos veículos vulgares. «Guiar dá-me uma sensação de grande liberdade, esqueço as chatices do dia-a-dia».

A vida de Bernardo parece um jogo electrónico a tentar chegar à etapa seguinte.  Tudo começou quando ainda navegava no ventre materno.  A malformação foi descoberta na ecografia morfológica. Os pais consultaram vários médicos em Portugal e em Espanha, e todos sugeriram que Bernardo poderia nascer em Lisboa. Assim começou o laço com o Hospital de Santa Maria. «Foi onde nasci e me tornei médico». Foi ali que passou parte da infância, sujeito a mais de uma quinzena de operações. «Perdi a conta, mas é possível que aos 16 anos o número de cirurgias fosse superior à idade».

Entrava no bloco operatório com um Mickey de peluche. Os pais e familiares tentavam amenizar a ideia do internamento e levar um bocadinho de casa para o hospital. Teve direito a uma televisão portátil e recorda que lia e estudava bastante. Houve, no entanto, dois episódios que não conseguiu compreender. Os balões e as batas brancas. Um dia entrou no bloco para realizar uma das muitas cirurgias e o tecto estava tapado com balões, e passou a associá-los às operações. A fobia das batas brancas era tão grande que os pais e a tia, que o criou, ligavam para os cabeleireiros para tirarem a bata, senão Bernardo desistia de cortar o cabelo. «Por volta dos dez anos, a fobia transformou-se numa admiração enorme pelos profissionais de saúde, por aquilo que conseguiam fazer às pessoas. Por isso decidi seguir Medicina», revela.

À entrada da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, no Hospital de Santa Maria, onde nasceu e tirou o curso

Cá fora, a experiência no jardim-de-infância não foi das melhores. Era muito protegido e nem saltos podia dar. Na escola primária foi muito bem recebido. Na altura tinha mais equilíbrio, andava sem quaisquer auxiliares de marcha e até era incluído nas partidas de futebol. «Fiz muitos amigos no primeiro ano do ensino primário e hoje, passados 20 anos, ainda os mantenho». Tem uma vida social activa. Desde sempre teve facilidade em relacionar-se. Os amigos são um dos pilares fundamentais da sua vida.

Bernardo acha que ser criança foi fundamental para aceitar que parte das férias grandes fossem passadas no hospital. Esse e outros mecanismos de protecção que arranjou, como ter apagado da memória algumas cirurgias.

Há coisas que não esquece.  Por volta dos 14 anos começou a ter alguma falta de equilíbrio e precisou de recorrer mais vezes à cadeira de rodas. Há momentos que insiste em lembrar: «a interacção com outros doentes e com os profissionais de saúde era muito enriquecedora».​
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É com a ajuda das muletas e de muito optimismo que Bernardo encara o dia-a-dia

Com uma perna oito centímetros maior do que a outra, Bernardo tem forçosamente de usar calçado ortopédico especial adaptado. Mas nenhum destes condicionalismos o impedem de traçar o seu caminho.  Fez Erasmus na Universidade Complutense de Madrid.

«Foi muito gratificante para mim provar que era auto-suficiente. Desde aprender a cozinhar até fazer outras tarefas domésticas».

Ao longo do percurso escolar sempre foi o melhor aluno da turma. «Mas a questão de ser "crominho" nunca se pôs. Todas as pessoas me respeitavam e sempre me valorizaram pelas notas que conseguia ter». Nunca se sentiu vítima. Bernardo acredita que «o bullying também depende da pessoa em questão. Acho que psicologicamente nunca estive virado para isso. Nunca me deixei afectar».

A inclusão social é uma temática que lhe é querida, por isso trabalha com o Gabinete de Inclusão de Necessidades Especiais, da Universidade de Lisboa. Gosta de passar uma mensagem de esperança e de superação. Dá o exemplo para que o seu semelhante não desmoralize. «Para que pense que também vai conseguir acabar o curso, ou ter uma experiência académica internacional».​
 
Gostava de praticar uma actividade física, mas confessa que a vida de médico é já de si muito desgastante​​

Gostava de praticar uma actividade física, mas confessa que a vida de médico é já de si tão desgastante que se assemelha ela própria a uma modalidade desportiva. «Se pratico exercício físico? É a maratona do dia-a-dia».

Acha engraçado ter passado de paciente a médico, principalmente por ter o dever de saber quais são as necessidades a colmatar. Humilde, apresenta-se como o médico-paciente que, quando as dúvidas surgem, esclarece-as com os colegas.

Ser médico é uma espécie de «agradecimento à Medicina pela qualidade de vida que me conseguiu dar». Hoje tem uma vida perfeitamente normal, onde não faltam desafios. «Quando não tenho desafios, tento procurá-los, porque é isso que me faz falta.»

 

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