Da Ponta da Atalaia, o olhar alcança toda a Costa Vicentina e parte do Litoral alentejano. A Norte, o Cabo Sardão é visível à vista desarmada e Sines vislumbra-se de binóculos em dias limpos. A Sul, vê-se o Cabo de São Vicente, onde a terra acaba. A linha costeira desenha-se recortadíssima defronte do mar imenso. Há falésias que mergulham a pique no mar, pontuado por rochas onde se desmancham ondas muito brancas. Há praias de areia fina lambida pelas águas e algumas de calhaus rolados que se entrechocam no vaivém da maré.
Há mil anos, outros homens ter-se-ão deslumbrado com este mesmo espectáculo. Onde hoje namorados se enlaçam olhando o mar, outrora se ajoelharam muçulmanos à chamada do muezim para a oração. Na Ponta da Atalaia existiu um grande convento árabe, o Ribāt da Arrifana, construído para meditação e oração. É o único monumento nacional no concelho de Aljezur. Quem olha a esquadria das ruínas no solo não imagina a dimensão do achado arqueológico: nove mesquitas, uma madraça (escola corânica), um cemitério com 59 sepulturas, casas de habitação. O abandono a que o Ribāt está votado tem os dias contados: as escavações vão continuar e será criado no local um centro de interpretação.
O médico Artur Santiago elege, entre todas, a praia da Arrifana, com a extensa linha de areia em meia-lua e as antigas casas de pescadores desenhadas na arriba
Na estreita faixa de terra da Costa Vicentina, 60 quilómetros entre Odeceixe e Sagres, o difícil é nomear as praias mais belas. «São todas diferentes e todas bonitas», garante Artur Santiago, médico que sempre viveu rodeado de mar. Da Nazaré natal mudou-se para o Pico aos 50 anos e oito anos depois para o Vale da Telha. Todos os dias, ao largar o trabalho no centro de saúde de Aljezur, gozava a «sensação de estar de férias». Com a reforma alcançada em Junho, dedica-se ao que mais gosta: o surf e a pesca. Não podia ter escolhido melhor casa. O médico elege a praia da Arrifana, com a extensa linha de areia em meia-lua protegida pela falésia alta e as antigas casas de pescadores desenhadas na arriba. Do mar ergue-se a Pedra da Agulha, que foi casa de uma águia pesqueira. A baía protegida tem as melhores condições para os iniciantes do surf, mas a grande vantagem desta costa é a diversidade de ondas gerada por praias muito diferentes. «Há ondas para todos os gostos e feitios», brinca Artur Santiago.
Na larga praia de Odeceixe, enquadrada entre duas arribas, é possível escolher entre o rio e o mar
Outra pérola é a larga praia de Odeceixe, enquadrada entre duas arribas e banhada por rio e mar, ali mesmo na fronteira com o Alentejo, traçada pela Ribeira de Seixe. No largo principal da vila, as esplanadas continuam repletas de turistas, e crianças muito loiras brincam junto à fonte. Do moinho, no cimo da colina, avista-se o casario branco e a linha ondulante do rio que cruza o vale verde e liso, onde pastam vacas. No silêncio do dia, chega lá acima o tinir dos badalos. Para Sul, pela N120, há que parar nas praias da Amoreira e de Monte Clérigo. Já depois da Carrapateira, a do Amado é a eleita por Artur Santiago para o surf. Para quem gosta de praias desertas, há a da Pipa, a Norte do Ribāt, e a do Vale dos Homens, no Rogil. Na das Adegas faz-se naturismo, na do Canal é deixar-se embalar pelo rebolar dos seixos.
Esta é a única costa do mundo onde as cegonhas brancas nidificam nas falésias marítimas. O mar é fértil em peixe e marisco, e a costa oferece os melhores percebes de Portugal, gabam-se estes algarvios. Cabe ao engenho do homem apropriar-se destas riquezas, em manobras arriscadas nas escarpas e rochas. Zé Fininho, de seu nome José Vitorino Marreiros, é um dos 80 percebeiros da Costa Vicentina. Começou aos 14 a acompanhar o pai, e já o avô era percebeiro. A procura é grande, garante, até porque «quem não tem percebes não tem clientes».
O lisboeta Rui Rodrigues tornou-se agricultor por acaso e hoje é o maior produtor nacional de batata-doce biológica
Tão rico é o mar como pobre a terra. Rui Rodrigues conseguiu o prodígio de fazer brotar riqueza do solo arenoso. O designer com carreira feita em jornais e agências de publicidade, «urbano-dependente» assumido, largou Lisboa há nove anos para criar um projecto turístico na costa. Por acaso tornou-se agricultor e hoje é o maior produtor nacional de batata-doce biológica. Entre as variedades de batata-doce produzidas na região, a variedade Lira, com Indicação Geográfica Protegida (IGP), é conhecida como “batata-doce de Aljezur”. A plantação estende-se por 26 hectares com vista para o mar, perto do Rogil. Para lá chegar é preciso deslizar com perícia na areia da estrada, para não atolar o carro. Vale a pena a aventura. Rodeado por dois rafeiros alentejanos e um cão de água, Rui conta, sorridente, a sua história. Mais cinco anos e reforma-se, ainda quer dar «duas voltas ao mundo de veleiro».
José Vitorino Marreiros é um dos 80 percebeiros da Costa Vicentina. Começou aos 14 a acompanhar o pai
Os cães ladram na rua estreita que sobe para o castelo de Aljezur, de onde se avista o mar e a serra de Espinhaço de Cão. No caminho passa-se pelo Museu Municipal, um edifício de 1883 que albergou os Paços do Concelho. Ambos conservam vestígios da cultura islâmica que se fazem sentir, antes de mais, em muitos topónimos: Odeceixe, Mariares, Aljezur, Atalaia, Arrifana, Alfambras, Bordeira... Até ao terramoto de 1755, a vila foi «um dos mais importantes portos do Algarve», conta o fundador da Associação de Defesa do Património Histórico e Arqueológico de Aljezur. É curioso imaginar na actual ribeira, que mal se distingue do topo do castelo, um rio largo por onde navegavam caravelas de 130 toneladas até à foz, na praia da Amoreira. O terramoto, devastador, ditou a perda do caudal do rio e o declínio económico de Aljezur. José Marreiros desfia mil histórias da terra onde cresceu e que aprendeu a amar. A lenda da tomada do castelo pelos cristãos, os saques dos corsários marroquinos, os aviadores nazis sepultados no cemitério local, a ostracização a que Aljezur foi submetido, após ter sido um dos dois concelhos onde Humberto Delgado venceu (oficialmente) as eleições de 1958.
Na Carrapateira, o Museu do Mar e da Terra guarda a memória do modo de vida da aldeia: a pesca e a agricultura
Maria Teresa Marques vem de uma família de pescadores. Ao Museu do Mar e da Terra doou muitos objectos. Chamam-lhe "mãe do museu"
À chegada à Carrapateira, a névoa cobre a aldeia e oculta a extensa praia da Bordeira. Quem lá vive sabe que «vai abrir». Aqui restam sobretudo idosos e não é fácil o acesso à saúde, confirma o médico. Aos 80 anos, Maria Teresa Marques já duvida se fez bem em não seguir a família para a margem Sul da capital. Sem vizinhos, porque «as casas próximas pertencem a estrangeiros», acompanha-se das memórias de uma vida que já não reconhece. Os objectos desse quotidiano, feito de pesca e agricultura, doou-os ao Museu do Mar e da Terra. Chamam-lhe “mãe do museu”. No espólio incluem-se muitas fotografias tiradas com as Kodak, que dois irmãos trouxeram da pesca do bacalhau.
Ruínas de uma aldeia árabe de pescadores, no Pontal da Carrapateira
Percorrendo a estrada de terra batida do Pontal da Carrapateira, ladeada por dunas de esteva e camarinhas, que faz parte da Rota Vicentina, chega-se ao Portinho da Zimbreirinha. Até há poucos anos era aqui que os pescadores guardavam as embarcações, em esteiras de madeira e canas presas na rocha, para onde os barcos eram içados à força de braços. Perto, as ruínas de um povoado islâmico de pescadores e a vista desafogada sobre a praia do Amado.
Na Ponta da Atalaia, o pôr-do-sol cria uma faixa de luz sobre o mar, que obscurece a enorme pedra que dá nome ao cabo, até que o manto azul se torna cinza, e o céu se cobre de rosa e laranja. Os jovens casais partem abraça- dos, cessam os guinchos das gaivotas, o silêncio toma conta do espaço. É hora de aconchegar o agasalho à pele e partir.