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3 agosto 2023
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de João Lopes Vídeo de João Lopes

Entre o castelo e o rio

​​Eça de Queiroz transformou Leiria em cenário do livro "O Crime do Padre Amaro".​

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À noite, o castelo iluminado destaca-se na paisagem. No calor estival, sabe bem ficar ao relento, a ouvir o Lis correr, embalado pelo coaxar das rãs. O castelo e o rio são centrais na cidade. «Foi em seu redor que Leiria se desenvolveu», diz Maria de Lurdes Pombo, a quem o tempo tornou leiriense e que tem na Barosa, freguesia próxima, a sua farmácia.

O rio é sinónimo de frescura, com a água escurecida pela sombra de grandes árvores de onde pendem heras. Uma das várias pontes que garantem fácil acesso às duas margens evoca um bar com bancos altos vermelhos junto a um balcão defronte para a água. Perto encontra-se uma escultura de Bordalo II, um dos muitos exemplos de arte urbana na cidade. Ao longo dos 11 km do percurso pedestre, conhecido como Polis, que ladeia o Lis, passeiam pessoas e pratica-se desporto.


Lisete Portela, técnica no Moinho do Papel, explica à farmacêutica Maria de Lurdes Pombo o fabrico artesanal do papel

É também junto ao rio que está o Moinho do Papel, que em 1411 se tornou a primeira fábrica de papel em Portugal, feito a partir de trapos. As roupas eram recolhidas de porta em porta, e depois esfarrapadas e colocadas com muita água no engenho, até se reduzirem a pasta. «A pasta era colocada em tinas e, com ajuda de uma forma com rede, produzia-se, folha a folha, o papel», explica Lisete Portela, enquanto coloca numa baeta (pano de algodão) a folha que acabou de criar, e a prende a secar no estendal. «Por alguma razão se usa a expressão: “Ter paciência de chinês”. Foram os chineses que inventaram o papel, no século II», ri a responsável pelo espaço museológico recuperado em 2009 pela mão de Álvaro Siza Vieira. Além da delícia de ver diante dos olhos um processo artesanal com 600 anos, o visitante pode trazer para casa folhas de papel de algodão, ideais para trabalhos artísticos.​

 


Leiria tem cartas para dar nas artes do papel e foi também aqui que nasceu uma das primeiras oficinas de impressão tipográfica na Península Ibérica, instalada pela família judaica dos Orta, quando chegou à cidade, em 1492. Ali foi impresso o Almanaque Perpétuo, do astrónomo Abraão Zacuto, documento importante nos Descobrimentos portugueses.

Junto ao moinho, no imponente Convento de Santo Agostinho, está instalado o Museu de Leiria, com referências a relevantes descobertas na região, como o esqueleto do "menino do Lapedo", e fósseis de crocodilos e dinossauros, com 152 milhões de anos, encontrados na mina da Guimarota.


Cestaria Fonseca, na rua conhecida como "Direita"

A caminho do centro histórico, o jardim Luís de Camões, enfeitado com bandeirolas para o próximo evento, prova que «Leiria está sempre em festa», garante Maria de Lurdes. Em agosto, a cidade vibra com o festival de música gótica Extramuralhas. Na rua conhecida como "Direita", «a mais torta de Leiria», ainda há lojas antigas, como a Cestaria Fonseca, decorada com chapéus de palha, e a pitoresca Tasca 7, conhecida pela comida caseira de Estrela Vieira, a quem todos chamam Estrelinha. À noite, há 30 anos que o ponto de encontro se faz no histórico Os Filipes Bar.


A antiga Pharmacia de Leonardo da Guarda e Paiva é um dos locais da rota d'"O Crime do Padre Amaro"

Por todo o lado há referências a Eça de Queiroz, que ali viveu entre 1870 e 1871, enquanto administrador do concelho. Eça transformou a cidade em cenário da obra "O Crime do Padre Amaro", e a cidade devolveu a oferta criando uma rota turística que transporta os visitantes numa viagem ao século XIX. Lá está a casa, muito degradada, onde o escritor viveu, na Travessa da Tipografia; a estreita Rua da Misericórdia, com a igreja construída sobre os destroços de uma sinagoga do século XV; e a Praça Rodrigues Lobo, homenagem ao poeta leiriense, «o coração da cidade», nas palavras da farmacêutica. E, depois, o Largo da Sé, com a antiga Pharmacia de Leonardo da Guarda e Paiva, revestida a azulejos da fábrica de cerâmica Viúva Lamego; e a Casa do Sineiro, local dos encontros entre Amaro e Amélia.

Junto à Sé, um elevador panorâmico conduz até ao castelo, com uma vista fabulosa sobre a cidade e, ao fundo, a serra da Senhora do Monte. Da varanda, toda a cidade é visível; cá de baixo, o castelo é omnipresente. «Está sempre a olhar para nós», dizem todos.


Manuel Cabecinhas é um dos sete oleiros da freguesia da Bajouca. Faz magia

A meia hora a norte de Leiria, a freguesia da Bajouca, rica em barreiros, é conhecida pela tradição de moldar o barro. Na oficina, Manuel Cabecinhas coloca o avental de serapilheira e senta-se ao torno. Com as mãos molhadas, modela um pedaço de barro cinzento, com a ajuda de uma cana. Em minutos, como se por magia, o barro ganha forma de uma cafeteira, uma garrafa, uma cantarinha. Na família, o talento de trabalhar o barro já vai na quarta geração. Há dois anos, os sete oleiros da freguesia criaram a associação O Barro na Mão do Oleiro, para «não deixar morrer a arte».


Loggia (varanda) do antigo Paço Real mandado construir por D. João I

Leiria é uma «cidade viva, com muito movimento, cultura e história, geograficamente perfeita», define Maria de Lurdes. Perto de Lisboa, Coimbra e Porto, dali se alcança facilmente o Santuário de Fátima, o Mosteiro de Alcobaça, as Termas de Monte Real, as grutas de Alvados e de Mira de Aire. As praias da Nazaré, da Vieira, de São Pedro de Moel e do Pedrógão, onde ainda se pratica a arte xávega, estão a meia hora de caminho. Não falta onde comer peixe fresco grelhado, mas do «belíssimo roteiro gastronómico leiriense» fazem também parte a premiada morcela de arroz, o leitão Boavista e as saborosas brisas do Lis.

A seis quilómetros da praia do Pedrógão, a lagoa da Ervedeira, de água salgada, é perfeita para praticar stand-up paddle ou caminhar nos passadiços de madeira. Em redor, vê-se mato e, aqui e ali, pequenas áreas de pinhal recentemente plantado. Da Mata Nacional anunciada nas placas, que teve início no século XIII e cresceu por ordem de D. Dinis, resta pouco mais de um décimo após o devastador incêndio que, a 17 de outubro de 2017, consumiu nove mil dos 11 mil hectares do pinhal de Leiria. «A minha infância morreu naquele incêndio», resume Diogo Cruz. Para o técnico camarário, como para todos os leirienses, o pinhal ficará para sempre na memória como o espaço dos piqueniques de verão, dos jogos de bola e das festas de aniversário.

À entrada da Marinha Grande, alguns pinheiros junto às antigas casas dos guardas marcam o sítio onde o fogo foi travado, mesmo às portas da cidade. Foi o pinhal de Leiria, e a abundância de areia e madeira para os fornos, que tornou a Marinha Grande o centro nacional da indústria do vidro, na segunda metade do século XVIII. Não há marinhense que não saiba quem foi Guilherme Stephens, o inglês que o Marquês de Pombal trouxe para dinamizar a Real Fábrica de Vidros, na Marinha Grande, e que transformou a comunidade, não só trazendo trabalho, mas também uma escola, um posto de primeiros socorros, um plano de pensões, música e teatro.


Mário Macatrão, maçariqueiro, dá continuidade à arte de trabalhar o vidro

Na oficina do Museu do Vidro, instalado no Palácio Stephens, Mário Macatrão, maçariqueiro, e João Medeiros, lapidário, dão continuidade à arte de trabalhar o vidro que marcou a vida de gerações de operários-artistas. «Dá-me satisfação ver as pessoas encantadas com a maneira como eu derreto e modelo o vidro», resume Mário. Aos 92 anos, quase 80 a trabalhar o vidro, não tem dúvidas: «Esta arte do vidro artesanal vai continuar sempre».​

 

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