Ana é uma daquelas pessoas magnéticas, dá vontade de a ouvir durante horas. Nem se entende bem o motivo, apenas é assim. Talvez por estar disposta a ouvir, sem pressa, de coração aberto. Não foi bem o que lhe sucedeu a dada altura, estava o mundo atemorizado com a ainda estranha palavra COVID-19.
Recue-se uns meses. Era novembro, Ana tinha 35 anos, uma vida realizada, com o seu próprio cabeleireiro holístico na Penha de França, em Lisboa, criado para fazer as pessoas sentirem-se inteiramente bonitas através dos cabelos. Vivia uma relação feliz com Bruno e era mãe de Alice, quase com quatro anos. Mas, as histórias das princesas têm sempre um mas, Ana não estava bem.
Em 2019, abriu o seu salão de cabeleireiro na Penha de França
Não sabia onde sentia dores, se no ouvido, na garganta ou nos dentes. Doíam-lhe os ossos. As suas queixas eram, uma e outra vez, ignoradas pelos médicos. As dores, o inchaço, o facto de ter aumentado o tamanho dos sapatos de 37 para 40, eram atribuídos à maternidade. E até à sua escolha de ainda amamentar a filha.
Numa visita às urgências do hospital por conta de mais um episódio de dores intensas, deparou-se com «um médico horrível», recorda, exasperado por não conseguir precisar a origem do mal-estar. Porém, seria precisamente a rispidez e impaciência do clínico a salvá-la.
Foi quem a encaminhou para um colega, um dentista, «o único a sentar-se para me ouvir e a abrir o coração para mim». Seguiram-se mais exames sem resultados às doenças autoimunes, na ecografia à tiroide e nas análises de sangue.
Mas havia algo. E apenas seria revelado no último exame à tiroide, uma TAC (tomografia computorizada) pedida já sem expetativas, tanto por parte do dentista como da própria Ana. «Nessa altura, já nem eu acreditava que tinha alguma coisa. Só não entendia o que se passava, porque as queixas continuavam». Desconhece o motivo que levou o especialista que realizou a TAC a «subir o aparelho mais um bocadinho» e a descobrir um tumor benigno junto à hipófise, uma glândula na base do cérebro.
No salão, Ana tenta conhecer a história de quem a procura, através dos cabelos
A consequência do dito tumor é a produção desmesurada da hormona do crescimento. E desmesurada é a palavra certa. Se o valor de referência de produção desta hormona no corpo humano se situa em 200 no máximo, no caso de Ana ultrapassava os 900. A sua doença ganhava finalmente nome: acromegalia, uma patologia que afeta três pessoas num milhão. «Saiu-me a lotaria», ri a cabeleireira, hoje com 39 anos.
Nesta altura, tinha os ossos e os órgãos a crescer sem parar, daí as dores. «Tenho uma largura de ossos na cara que não tinha antes. Os ossos dos meus dedos também são largos. Não são para a minha mão», diz. Emociona-se. «Toda a gente falava como se eu não tivesse nada. Só porque não se vê? Tudo continua a crescer, as pessoas podem morrer porque o coração não cabe cá dentro. Há quem fique com a tensão alta, uma das características da doença». Não é o caso. «O que cresceu não volta a encolher», mas o coração está bem e a tensão arterial também. E mais ainda a sua força vital e o bom humor.
A 20 de março de 2020, com o país fechado em casa pela pandemia, Ana recebeu um telefonema a instá-la a ir de urgência ao hospital realizar uma segunda TAC, com o intuito de verificar se o tumor tinha aumentado nos quatro meses entretanto decorridos. Finalmente, as análises confirmaram a produção exagerada da hormona do crescimento, ditada pelo macroadenoma da hipófise, o nome do tumor.
Químicos não entram. A cabeleireira acredita em produtos naturais
Sem conseguir precisar há quanto tempo se tinha instalado no seu cérebro, a ponto de lhe provocar as tais dores de crescimento «horríveis» e transformar a sua fisionomia de forma definitiva, Ana obteve uma resposta. A acromegalia é uma doença associada ao protagonista do filme de animação “Shrek”, um ogre verde, feio e simpático, precisamente por alterar os traços de quem dela padece. Ana identifica-se com a companheira do personagem infantil, Fiona. «As pessoas com acromegalia ficam desfiguradas pelo crescimento anormal dos ossos e dos tecidos», explica a cabeleireira, para logo brincar com o paradoxo. «Acho até engraçado ter uma doença que põe as pessoas feias e dedicar-me a fazer as pessoas sentirem-se bonitas e aceitarem-se como são».
Em abril de 2020, Ana iniciou os tratamentos. Uma injeção de 28 em 28 dias, que «ajudou muito». «Comecei logo a sentir muito menos dores, a cara a desinchar». Ficou em lista de espera para a operação de remoção do tumor. Chorou com a filha Alice, por ter de deixar de a amamentar, mas o assunto foi ultrapassado com uma boa conversa.
A cirurgia aconteceu no dia 21 de janeiro de 2021. Antes da intervenção, o neurocirurgião explicou que não seria possível remover o tumor na totalidade. Pela dimensão da massa, os médicos calculam que tenha levado dez a 15 anos a crescer.

Para a recuperação gradual, Ana começou por levar injeções de 28 em 28 dias
A cirurgia correu bastante bem, tiraram «mais do que esperavam», conta Ana. O que restou é operável apenas por radiocirurgia, para a qual está em lista de espera. A radiocirurgia pode levar mais de três anos a ter efeitos no corpo.
Desde outubro, acrescentou nova medicação injetável diária, e em janeiro deste ano viu os frutos da sua dedicação, pela primeira vez: os valores da hormona do crescimento estão abaixo de 200.
A adaptação a esta medicação foi difícil ao início, mas hoje a cabeleireira sente-se bem. Tenta ter uma alimentação saudável, fazer exercício, e minimizar o impacto dos efeitos bons dos medicamentos. «Sinto-me com força e vontade para ser velhinha».
Não lhe falta autoconfiança ou amor. «O Bruno acredita que eu resolvo sempre», sorri. E ela também. «Fiz tantas coisas já nestas condições. Agora penso: “Uau, eu sou espetacular! Se não tivesse isto, ninguém me agarrava. Eu consigo tudo”», confidencia.