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2 maio 2024
Texto de Teresa Oliveira (WL Partners) Texto de Teresa Oliveira (WL Partners) Fotografia de Ricardo Castelo Fotografia de Ricardo Castelo Vídeo de Nuno Santos Vídeo de Nuno Santos

Cantar apesar dos pulmões

​​​Beatriz Capote tem uma doença pulmonar grave, mas não falhou a participação no Festival da Canção.​

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'Quem não sabe é como quem não vê', diz o povo, o que se aplica na perfeição a Beatriz Capote, vocalista da banda Perpétua, que no dia 9 de março disputou a final do Festival da Canção.

Depois do programa, os comentários na rede social YouTube, a mais ativa nas reações do público às canções a concurso, comparavam a sua prestação com a da semifinal, que acontecera 15 dias antes. «Teve uma evolução notória e brilhante, e mostrou mais confiança e segurança», pode ler-se na apreciação mais votada pelos utilizadores.


Beatriz Capote tem uma doença rara. No ano em que foi diagnosticada, só havia 17 casos identificados no mundo

O que a maioria dos espetadores não sabia é que Beatriz sofre de hemossiderose pulmonar idiopática, uma «doença pulmonar autoimune crónica e rara», que provoca episódios de sangramento pulmonar. Uma semana antes da semifinal, teve uma crise «muito inesperada». Não falhou a ida a palco, mas «não foi fácil, de todo», explica. «Estive literalmente de cama até ao momento de entrar no carro e ir da Gafanha da Nazaré para Lisboa», conta. Chegada aos estúdios da RTP, ficou a descansar «numa sala separada de toda a gente, em off», que só abandonou nos momentos estritamente necessários: foi o agente, Bernardo Limas, quem a substituiu no primeiro ensaio.
 
O esforço de cantar em direto foi tremendo: «Antes de entrar no palco, estava sentada, de olhos fechados, a reunir todas as energias que conseguia só para estar ali em cima». Não foi visível, mas «estava com tonturas ao cantar e dançar». Foi um «milagre» ter conseguido fazê-lo, comenta Bernardo Limas. Na final, ainda com medicação para a crise, que estava quase ultrapassada, sentia-se outra pessoa.

Beatriz explica que as crises significam «falta de ar a fazer tudo». O pulmão «esforça-se para conseguir o mínimo de ar e tirar o oxigénio para dar energia ao corpo». Como conseguiu dar a volta por cima? Por causa da sua condição de saúde, os Perpétua estiveram mesmo à beira de não participar no Festival da Canção. No hospital, os médicos relembravam-lhe que a «a saúde está primeiro». Passou dias difíceis, tanto pela doença como pela possibilidade de ter de desistir de participar no Festival.

Diagnosticada aos 12 anos, atualmente com 27, Beatriz Capote já conhece os ingredientes que normalmente resultam num episódio de sangramento pulmonar. «Sinto que há uma ligação do nosso estado psicológico ou emocional ao nosso corpo» e que o espoletar de uma crise «pode estar muito associado a cansaço, stresse, ansiedade, pressão. E neste caso havia esses fatores todos juntos». Na véspera da participação na semifinal do Festival, a pressão estava toda em Beatriz, num momento em que precisava de sentir tranquilidade para o corpo recuperar. Estes dias muito intensos foram também de superação. «Parece um contrassenso, não é?», pergunta, explicando que neste caso foi mesmo a pressão que a ajudou a recuperar.


Beatriz é sobrinha da cantora de jazz Jacinta, e a mãe é professora de música

«Sinto que tive um boost enorme, uma convicção de “preciso mesmo de ficar bem”, porque tinha muita gente à volta a dar-me muito carinho e muito amor». Salienta os companheiros de banda, que lhe diziam: «deixa estar o Festival, Beatriz, o que interessa é ficares boa», palavras que só lhe alimentaram a vontade de não falhar, consciente da oportunidade que representava para todos. «O facto de estar a acontecer uma coisa tão importante, e sentir toda essa energia, fez com que me empenhasse mais em recuperar. Isso aconteceu principalmente pelas pessoas. Foi muito especial». 

Beatriz Capote nasceu numa «família bastante musical»: a mãe é professora de música e deu aulas em conservatórios durante muitos anos, a tia é a cantora de jazz Jacinta, curiosamente convidada para escrever uma música para o Festival da Canção 2023. Tanto Beatriz como os dois irmãos aprenderam um instrumento musical «desde pequeninos» e, mais tarde, foi ela quem decidiu seguir o curso de música na universidade, com a especialidade em violino, o instrumento que a acompanha desde sempre. Ao mesmo tempo, ia trabalhando a voz a cantar jazz, por influência da tia, muito presente na sua vida, mas também encarando a música «de uma forma mais abrangente e eclética». Neste momento, além dos Perpétua, integra o duo Equinócio, com um género musical diferente do pop fresco da banda com que se apresentou no Festival, e dá aulas de música e de instrumento.


A música faz parte da vida de Beatriz desde muito cedo

Com o final da infância marcado por pneumonias de repetição, estando «constantemente internada», aos 12 anos foi diagnosticada com hemossiderose pulmonar idiopática, considerada, na altura, uma doença raríssima: «acho que havia 17 casos no mundo, portanto muito poucos. Em Portugal nem sei se eram dois ou três». Atualmente há mais casos diagnosticados, «há mais investigação e conhecimento». A doença de Beatriz era tão rara que o diagnóstico foi feito em parceria entre os médicos do Hospital Pediátrico do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e especialistas dos Estados Unidos da América.
 
«Na altura do diagnóstico não tinha muita noção do que estava a acontecer», avança. «Só mais tarde percebi a gravidade da situação. A minha noção era a da dor que eu sentia fisicamente». Se a medicação não fizesse efeito, a doença poderia ser fatal. Felizmente, resultou. «Sinto-me claramente sortuda por isto tudo, por conseguir respirar e por ter uma vida normal em grande parte do tempo e fazer o que pretendo», confessa.


Escolheu dar testemunho para levar esperança a pessoas doentes, nomeadamente com doenças autoimunes

Uma das razões porque escolheu dar o seu testemunho é a certeza de que há outras pessoas a passar por situações semelhantes. Quer que se sintam «um bocadinho mais acompanhadas» nesse processo. Também lhe interessa deixar a mensagem de que a componente psicológica «tem um impacto enorme, enorme» nas doenças autoimunes. E é muito alimentada pela força transmitida por quem rodeia as pessoas com doença. Para o explicar, aproveita uma frase que ouviu à radialista Inês Meneses: «nós precisamos dos outros para chegar até nós». Em especial nos processos de recuperação, «muitas vezes a palavra do outro, ou das pessoas que nos rodeiam, faz toda a diferença». No caso do Festival da Canção, «não fui só eu ali: fui porque todos à minha volta me levaram até lá».

E se não tivesse conseguido? «Temos de ser honestos e sinceros. Há artistas que cancelam concertos com milhares e milhares de pessoas, quando assim tem de ser». Os Perpétua não precisaram de o fazer.  

Agradecimentos à Associação Extragenária e a Wakai Studios.​