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29 junho 2023
Texto de Sandra Costa Texto de Sandra Costa Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro Vídeo de Duarte Almeida Vídeo de Duarte Almeida

«A doença deu-me esta profissão»

​​​​Núria Nunes tornou-se nutricionista para lidar com a colite ulcerosa. Hoje ajuda os outros, para evitar que passem pelo que passou.​​​​

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​Sob o olhar atento da Pimenta, a cadela bulldog francesa, Núria cozinha wraps à base de flocos de aveia, recheados com guacamole e camarões. Fala com entusiasmo das propriedades anti-inflamatórias da curcuma e do gengibre, a quem chama «o meu melhor amigo». Não é para menos: a alimentação permitiu-lhe controlar os sintomas das doenças autoimunes associadas à colite ulcerosa. Núria não só recuperou a qualidade de vida, como encontrou uma profissão que vive como uma missão.
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Se hoje fala com naturalidade da doença, aos 23 anos o embaraço face aos sintomas e o medo de que fosse cancro do intestino, a mesma doença da tia que acabara de ser ostomizada, levaram-na a adiar oito meses o pedido de ajuda. O périplo de consultas e exames saldou-se, um ano depois, no diagnóstico de colite ulcerosa. Para quem temia ter cancro foi um alívio, mas o pior estava por chegar. A medicação não produzia os efeitos esperados e passados três meses a extensão do cólon com úlceras quadruplicara. Às perdas de sangue juntaram-se dores, anemia e perda acentuada de peso. «Bastava meter a comida à boca e ia a correr para a casa de banho, antes mesmo de engolir», conta. Começou a achar que estava a ficar paranoica. 

Aos 25 anos, a vida tornou-se um inferno. Núria evitava ausentar-se de casa com receio das urgências em ir à casa de banho, várias vezes «falsas vontades». «Nem pensar em ir à praia ou dar um passeio no parque, uma simples ida ao supermercado pode ser um terror. Há pessoas que não conseguem conter-se», explica. Além dos sintomas intestinais, a doença desencadeou uma úlcera na córnea, artrite e uma distrofia muscular rara que, durante anos, a obrigaram a pedir ajuda para tomar banho, vestir-se ou comer. «A dor era tão intensa que a resposta do meu organismo era vomitar e depois desmaiar. Era o meu desliga e volta a ligar», conta. Seguida por um rol de especialistas, tomava mais de dez medicamentos, incluindo alguns incompatíveis com o desenvolvimento fetal. Ser mãe tornou-se uma miragem. «Era mais uma coisa que me estava a ser roubada», sentiu.

Núria está grata ao apoio familiar, mas houve momentos em que se sentiu injustiçada: «Porquê eu?». Nem por isso se entregou à doença e recusou as advertências para se mentalizar, desistir de ser mãe ou trocar de casa por uma de piso térreo. «Nunca consegui aceitar que aquela seria a minha condição para sempre. Não ia desistir até ter a certeza de ter feito tudo». Descobriu em si uma teimosia e resiliência que, hoje sabe, «tiveram um papel importante na minha salvação».


Na horta cultiva alimentos anti-inflamatórios indispensáveis à sua alimentação 

Ainda que nas consultas de gastroenterologia lhe dissessem que podia comer tudo, Núria tinha a certeza que a alimentação interferia na doença. Por não encontrar apoio, aos 29 anos, na pior fase da doença, decidiu inscrever-se na faculdade e estudar nutrição. Na pequena horta da vivenda onde então morava, começou a cultivar alimentos anti-inflamatórios, incentivada pela médica da consulta da dor crónica, a primeira pessoa que lhe falou do gengibre. «Odiava gengibre, agora adoro e vai em tudo!».

A mudança na alimentação e a introdução de suplementação alimentar começaram a produzir efeitos: o número e a duração das crises diminuiu, as comorbilidades associadas à colite ulcerosa tornaram-se recessivas. Sintomas como as dores, o cansaço, a visão turva ou a artrite desapareceram. Gradualmente, foi possível reduzir a medicação e hoje Núria toma apenas dois medicamentos. Ser mãe voltou a ser uma possibilidade. «A alimentação para as pessoas com doença intestinal inflamatória não é uma cura, mas reduz os sintomas ao ponto de ser possível recuperar a qualidade de vida», explica a nutricionista.

Hoje, tem uma vida completamente normal. «Passei de precisar de ajuda para me vestir para agora poder praticar ténis», diz com satisfação. A colite ulcerosa é incurável, mas ela aprendeu a viver com a doença e a gerir as crises que surgem duas ou três vezes por ano. Com o ajustamento da medicação e suplementação adicional a crise passa em dias, sem sintomas exacerbados. Núria já não entra em pânico. Aceitou a doença, sem que isso significasse resignar-se. «Sei tudo. Conheço as sensações da doença, já sou amiga dela. Digo-lhe: “Compreendo-te e sei o que preciso de fazer para viver contigo, da maneira que eu quero. Tu não me limitas!». Nem se coíbe, às vezes, de comer um caldo verde ou um caril, alimentos pouco recomendáveis à sua condição. 


A doença ensinou-a a confiar nas suas capacidades. «Não sabia que era capaz disto tudo»

A doença ensinou-a a confiar nas suas capacidades, reconhece. Por exemplo, receava não ser capaz de fazer um curso universitário, hoje surpreende-se ao pensar nas condições difíceis em que concluiu a licenciatura, sem falhar um ano. Mais tarde, fez uma pós-graduação em nutrição e oncologia, para se sentir mais protegida face à probabilidade de desenvolver um cancro no intestino. «Consigo trabalhar um pouco na prevenção», conta. O medo já não a trava. «Não sabia que era capaz disto tudo. Que tinha tudo isto em mim. Percebi que é verdade que conseguimos mesmo tudo, só temos de acreditar e não desistir. Às vezes parece que estamos a passar pelo inferno. Ora, porque é que iríamos parar no inferno?».


A nutricionista gosta de cozinhar e aconselha receitas saudáveis aos pacientes 

Graças à doença, também ganhou uma profissão que adora. Ser nutricionista nunca lhe tinha passado pela cabeça, trabalhava em publicidade. Escolheu o curso para se ajudar a si própria, hoje tem como missão colocar o que aprendeu ao dispor de outros. «Para que ninguém passe pelo que eu passei», diz com convicção. Sabe que grande parte do sofrimento era desnecessário com o acompanhamento certo.


Nas consultas maioritariamente online, Núria apoia sobretudo pessoas que sofrem de doenças inflamatórias do intestino

A maioria dos seus pacientes sofre de doenças autoimunes, 90% tem doença inflamatória do intestino. Nas consultas maioritariamente online, que têm a vantagem de evitar a necessidade de deslocações, Núria reconhece nas dúvidas e medos dos pacientes um lugar por onde passou. Por conhecer os sentimentos de solidão e abandono, dá-lhes tempo para falarem, esclarece dúvidas, conversa com os familiares, aconselha os cuidados preventivos para minimizar as comorbilidades: a secura da pele, a ida ao oftalmologista, os riscos da inflamação vaginal para os relacionamentos.

Garante-lhes que não estão a ficar malucos quando sentem os efeitos da comida antes mesmo de engoli-la: entretanto descobriu que na boca já temos enzimas digestivas. Deixa-os chorar, «a maioria chora na primeira consulta», acompanha familiares de pessoas com doença oncológica, arranja sempre um espacinho na agenda, nem que seja ao domingo ou à noite. Os passeios com a Pimenta, ao fim do dia, são muitas vezes ocupados a esclarecer dúvidas. Não raras vezes recebe mensagens que lhe aquecem o coração. «É reconfortante perceber que consigo chegar às pessoas e melhorar imenso a sua qualidade de vida. Fico verdadeiramente feliz».​

 
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