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28 março 2017
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Ana Marta Fotografia de Ana Marta

«A Bem da Farmácia, a Bem da Nação»

​​​​​As aventuras de duas farmacêuticas madeirenses com o Grémio Nacional das Farmácias.

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Contado a partir do Palacete de S. Bento, então residência oficial do presidente do Conselho, Oliveira Salazar, ou da Rua da Madalena, onde era a sede do Grémio Nacional das Farmácias, a Madeira fica duas vezes mais longe do que Bragança. À época dos factos, a distância sofria ainda maior agravo com a falta de terra firme. Do Funchal a Lisboa eram pelo menos dois dias e duas noites de viagem num barco a vapor. Ora, a experiência comprova a lei da insciência política: a distância é inversamente proporcional ao acolhimento de decretos e orçamentos. 

Depois, o factor histórico. A Farmácia Ribeirabravense abriu actividade em plena Segunda Guerra Mundial. Fundou-a, em 1942, José Azerêdo Pais, médico municipal - único - e delegado de Saúde - único - da Ribeira Brava. Ele habituou-se a manipular e a desenvolver medicamentos para tratar dores de dentes, otites, lesões traumáticas dos pescadores, tuberculoses graves e quaisquer outras doenças dos 20 mil habitantes do concelho. 

Em Lisboa, um ano antes, ali pelo Natal, nascera o Grémio, instituição corporativa do Estado Novo. A dispensa de medicamentos passara a ter vigilância dedicada. O Grémio cobrava quotas, regulava o pagamento de impostos, emitia circulares às farmácias com normas e novidades legislativas, punia disciplinarmente as condutas irregulares.  



Como médico, José Azerê​do continuou sozinho por muito tempo. Em 1955, a Farmácia Ribeirabravense informava o Grémio de que «o movimento do receituário é somente de um médico». Já quanto à manipulação e dispensa de medicamentos, os reforços chegaram depressa​​​. Uma jovem farmacêutica, natural da Ponta do Sol, dez quilómetros adiante na linha de costa, adquiriu e assumiu a direcção-técnica da Ribeirabravense logo em 16 de Janeiro de 1943. De então para cá, a farmácia só conheceu uma segunda directora-técnica, que, nos dias de hoje, aos 91 anos, continua a tomar as decisões estratégicas. 

O factor humano é sempre um princípio activo. Olímpia Macedo e Maria da Paz Pais, as duas directoras-técnicas, provam como o mesmo objectivo pode ser alcançado por caminhos divergentes. Olímpia garantiu a sobrevivência da farmácia com uma estratégia de permanente tensão com o Grémio. Maria da Paz garantiu a sobrevivência da farmácia dançando o jogo das regras e da troca de ofícios. Pormenores à parte, na correspondência das duas farmacêuticas a crise é o facto permanente - e quase sempre o assunto de fundo.    

Durante a guerra, o Estado delegou no Grémio a difícil gestão do racionamento de produtos essenciais à manipulação de medicamentos, como o açúcar e o álcool. Em 1945, Olímpia Macedo reclamava fornecimentos com três anos de atraso de vaselina, teobromina, aprovada no tratamento de edemas e usada contra a hipertensão, e ácido cítrico, que combinado com magnésio dava umas limonadas milagrosas para o tubo digestivo. 

A primeira queixa da farmacêutica foi quanto à quota de 30 escudos cobrada pelo Grémio, «exorbitante quantia» para uma farmácia «de uma terra miserável», em que «centenas de doentes» não se tratavam por falta de dinheiro. De facto, o valor era desajustado, mas o Grémio nunca perdia a razão: «Certamente, o anterior proprietário nunca atendeu» às primeiras duas circulares emitidas pela instituição, nas quais avisou que aplicaria jóia e quota máximas às farmácias que não fizessem prova da liquidação da contribuição industrial.



As farmácias eram obrigadas a enviar anualmente ao Grémio, a título devolutivo, prova do pagamento da contribuição industrial. O problema é que havia atrasos na correspondência. Pedidos e respostas cruzavam-se pelo caminho e corriam mesmo o risco de se extraviar nalguma daquelas 583 milhas marítimas. Em 1946, «para obviar às dificuldades de uma cobrança regular, devido à morosidade dos serviços de correio», o Grémio tomou uma medida descentralizadora. Passaria a ser um seu delegado no Funchal a cobrar as quotas.

Em 1954, na Ribeirabravense deu-se a mudança tranquila. Olímpia Macedo decidiu regressar ao continente, onde fora feliz nos anos de faculdade, para instalar farmácia na margem Sul do Tejo. Maria da Paz Mendes Pais, nora do fundador, assumiu por trespasse a propriedade e a direcção-técnica. Os problemas permaneciam, mas o Grémio passava a ter uma interlocutora pronta para a guerrilha burocrática, com máquina de escrever e argumentos de calibre autorizado. Maria da Paz começou por «enumerar as razões» para um pedido de revisão em baixa da contribuição industrial:​

1.ª) A crise económica que a Madeira atravessa.
2.ª) O receituário da Casa dos Pescadores passar a ser aviado no Funchal, com excepção do serviço de urgência, que é, praticamente, nulo.
3.ª) A verba destinada a medicamentos para os pobres diminuir.
4.ª) O movimento do receituário é somente de um médico.



Toma lá, Lisboa, e avia-te de um conjunto de pontos finais, a puxar pelos factos e maquilhando os juízos valorativos. O estilo deu tanto resultado que Maria da Paz havia de pagar ao Grémio com serviço. Em 1957, foi nomeada Delegado da Classe à Comissão de Fixação dos Rendimentos Tributáveis. Deveria representar os colegas e apoiar as Finanças a apurar valores de cobrança «tão exactos quanto possível, de harmonia com o movimento comercial de cada farmácia em relação com as restantes do mesmo concelho». Uma missão contra-indicada a uma mulher de 30 anos na Madeira dos anos cinquenta, mas que  ela cumpriu sem sobressaltos.

- A minha receita é o bom senso. Ainda hoje digo aos meus filhos: não sou nenhum génio, mas não troco a minha cabeça pela vossa.

Nos anos 60, para além da farmacêutica directora, a Ribeirabravense tinha ao serviço um ajudante técnico, uma praticante, um aprendiz e um caixeiro. Em 1970, o aprendiz foi para Angola. Muitos rapazes da Ribeira Brava foram à Guerra do Ultramar, morreram lá 15. A população também sofreu a erosão severa de sucessivas vagas de emigração. 

Quem ficava, deitava mão ao que podia, às vezes a mão errada. O Grémio teve de lidar com vários casos de contrafacção de matérias-primas. Olímpia Macedo, no início de Fevereiro de 1947, desconfiou do aspecto de um azeite virgem «de primeira qualidade», que lhe custou 19 escudos o litro. Na prova, também sentiu um sabor estranho. Mandou-o analisar em laboratório: dez a quinze por cento era óleo de amendoim.

- Chegámos a esta tristeza! Há uma lei que pune o farmacêutico se cometer fraudes e dizem-nos que temos de o comprar já falsificado.

O Grémio Nacional das Farmácias agradeceu a denúncia, mas rejeitou qualquer responsabilidade no acontecido. O azeite fora embarcado em Lisboa em latas fechadas. Alguém iria ter de explicar como acabou comercializado no Funchal em pipas abertas, como o vinho nas tabernas da ilha. Abriu-se investigação policial. «A Bem da Farmácia, a Bem da Nação», como invariavelmente terminavam os ofícios.



Maria da Paz, em 1970, respondeu à letra à retórica do Grémio. Na altura, farmacêuticos de todo o país inundaram o organismo regulador com cartas de protesto. 

- É a primeira vez que me dirijo ao Grémio a que pertenço num tom que nem sequer é de revolta, mas, sinceramente o digo, de profunda mágoa pelo curso que escolhi.

A crise, como sempre, era o pano de fundo. À boca de cena, a obrigação de fazer descontos bonificados à Caixa de Previdência. No seu melhor estilo, Maria da Paz apresentou uma lista de argumentos contra a racionalidade e o cabimento orçamental da medida.

- Como é que uma farmácia do campo, cujo lucro é somente de 20%, sobrecarregada com as Finanças, Caixa de Previdência, Fundo de Desemprego, Caixa dos Comerciantes, quotas, Empregados , licenças, renda de casa, transporte dos medicamentos, telefone, água, luz e com tantas limitações, pode sobreviver?



A directora-técnica estava particularmente indignada com a ameaça do Grémio, de autorizar a Caixa de Previdência a montar farmácia própria, sem ter de obedecer às mesmas exigências regulamentares e fiscais. 

- Será tudo isto a Bem da Farmácia?
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