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12 novembro 2016
Texto de Ana Abrunhosa Texto de Ana Abrunhosa Fotografia de Tiago Machado Fotografia de Tiago Machado

Olhos para a vida

​​​Com o movimento da íris e ligeiros gestos de cabeça, Helena escreve emails, telefona, pesquisa no Google, insere posts no Facebook, joga às cartas e descobre criminosos em jogos de estratégia.

No retrovisor, um carro aproxima-se a alta velocidade. Parada numa fila de trânsito, com os quatro piscas ligados, pisa o travão com toda a força. «Ele bate-me a 150 km/hora, mas eu nem toco no carro da frente». Do impacto resulta um único ferido: Helena Abrunhosa, 39 anos, fractura grave nos ossos que ligam o crânio à coluna. O acidente aconteceu há 12 anos e desde então está tetraplégica, totalmente paralisada do pescoço para baixo. «Sou a mesma pessoa, só estou numa cadeira de rodas».

São os olhos, especialmente expressivos, que a ligam ao mundo. Com o movimento da íris e ligeiros gestos de cabeça, Helena escreve emails, telefona, pesquisa no Google, insere posts no Facebook, joga às cartas e descobre criminosos em jogos de estratégia. Consegue também ligar e desligar a televisão, fazer zapping e guiar sozinha a cadeira de rodas pelos corredores estreitos da casa.

Parece difícil, quase impossível. Ministros e secretários de Estado já visitaram Helena para conhecerem melhor a tecnologia que lhe oferece tanta autonomia. Uma tecnologia desenvolvida em Portugal, por portugueses, no Instituto Politécnico da Guarda. O nome é MagicKey (chave mágica). Trata-se de uma aplicação informática que utiliza uma webcam e iluminação de infravermelhos, com um algoritmo que detecta as pupilas. Helena interage com o computador num piscar de olhos. Literalmente.
 
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Nem sempre foi assim. «No início, demorava 15 minutos para escrever a palavra ‘associação’». O software foi evoluindo com a ajuda dos próprios utilizadores, entre os quais Helena se destacou. Valeu-lhe o curso de informática que tinha concluído com nota final de 20 valores, quando ainda eram raros os computadores domésticos. «Durante muitos anos, senti que estava à frente do meu tempo».

Helena licenciou-se em Farmácia, passou com distinção o curso de socorrismo da Cruz Vermelha e fez dois anos da licenciatura em Enfermagem. Esses conhecimentos técnico-científicos permitiram-lhe  ter uma noção perfeita da sua situação clínica, quer no momento do acidente, quer durante a longa recuperação. O impacto provocou uma lesão na articulação crânio-vertebral (clinicamente considerada das mais graves e de maior risco de vida), que, além da coluna e dos membros, paralisou também o pulmão esquerdo e as cordas vocais. Esteve muitos meses sem conseguir respirar sozinha, com ventilação artificial, e cerca de dois anos sem falar. Não segurava a cabeça, que tinha de ser presa à cadeira de rodas para permanecer direita. Mas nunca perdeu a consciência nem tão-pouco a percepção de tudo o que se passava à sua volta.

Ainda na estrada, impediu que os primeiros curiosos a chegar ao carro lhe movessem o corpo. «Um senhor conseguiu tirar-me o pé debaixo do travão, mas depois fiz sinal para não me mexer mais, porque eu sabia que tinha uma fractura na coluna». E nos cuidados intensivos do hospital vigiou constantemente os enfermeiros. «Tinha de estar sempre de olho na alimentação e nos medicamentos e fazia sons com a boca quando se engavam». Chegou a cuidar de outros doentes na Unidade de Cuidados Intensivos. «Um dia entrou uma senhora com o cateter preso com uma tesoura de metal, que acabou por magoá-la, claro, e eu é que chamei a enfermeira dela com os meus estalitos vocais. Quando percebeu o que se passava, a enfermeira agradeceu-me e disse às colegas ‘temos uma doente a tomar conta dos doentes’». Mesmo assim, Helena esteve três vezes perto da morte devido a erros de medicação. «O túnel era agradável, mas a tal luz ao fundo irritou-me e voltei!», brinca. Voltou cheia de energia e vontade de viver.

O tratamento no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão foi determinante. Todavia, ao regressar a casa sentiu-se inútil. «Não conseguia ler. Tenho mais de um milhar de livros e era-me impossível folheá-los. O suporte e o bucal para mudar as páginas só aguentavam as revistas cor-de-rosa, que detesto». Até que viu num noticiário uma reportagem sobre um novo software para pessoas com paralisia. Com o apoio da família e dos amigos, contactou a equipa de investigação, viajou pelo país, ajudou os técnicos a desenvolverem o produto e a promoverem-no junto de entidades públicas e privadas, e de outros doentes.

A cadeira de rodas de Helena está adaptada para ser conduzida através de uma espécie de joystick redondo que move com o queixo. Desta forma, os seus espasmos occipitais (movimentos involuntários do pescoço) já não representam perigo. «Na primeira cadeira de rodas, cheguei a perder o controlo uma vez e andei desgovernada em plena estrada até que me ajudassem. Tive sorte».

Ouvir Helena falar da sua “sorte” chega a ser desconcertante. O discurso é sempre lúcido, objectivo e, aqui e ali, com uma ponta deliciosa de ironia – como quando nos diz que, devido à placa de titânio que lhe liga o cérebro à coluna cervical, tem agora «mais parafusos na cabeça». 

Artigo publicado originalmente na Revista Saúda 01
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