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26 julho 2017
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«Nazi, estás preso»

​​​​​​​​​​​​Conheça os mandados de detenção dos médicos e investigadores responsáveis pelo Holocausto.

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Berlim, 30 de Abril de 1945. Perante a evidência da perda da guerra, Hitler suicida-se com um tiro na cabeça. Antes, deixa ordens para o seu corpo ser queimado com gasolina e nomeia os sucessores: Joseph Goebbels, como chanceler, e Karl Dönitz, presidente. Mas o sinistro ministro da Propaganda nazi suicida-se também, no dia seguinte.

No dia 7 de Maio, Karl Dönitz assina a rendição incondicional da Alemanha. A sua presidência, sedeada em Flensburg, no norte da Alemanha, iria, contudo, durar mais uns dias. Tantos quantos aqueles que os aliados, em particular Churchill, levaram a decidir-se sobre o que fazer com os membros do Governo e Estado-Maior alemães. A 23 de Maio, Dönitz era preso por soldados britânicos. Juntamente com ele, Karl Brandt, médico pessoal de Hitler e responsável pelo desenvolvimento, entre outras atrocidades, do programa de eutanásia T4 e da posterior “Solução final” para o extermínio dos judeus.

O relatório da prisão de Brandt, que o levaria ao julgamento em Nuremberga, pode agora ser visto no Museu da Farmácia, em Lisboa. A respectiva colecção foi ainda enriquecida com documentos referentes à prisão e julgamento de outros protagonistas das experiências médicas do regime nazi, com destaque para Hermann Schmitz e Fritz ter Meer, respectivamente presidente e director do consórcio químico IG Farben. Esta foi a empresa produtora do pesticida Zyklon B, usado nas câmaras de gás, tendo ainda financiado várias experiências levadas a cabo nos campos de concentração.

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«Não podíamos fechar os olhos às ordens de captura destes bastardos, julgados depois, pelos aliados, à luz dos direitos da Democracia», expõe o director do Museu da Farmácia. «As sociedades esquecem facilmente», defende João Neto. No seu entender, «é perigoso pensarmos que algo semelhante nunca mais poderá acontecer. Isso é esquecer o que é o ser humano. Os museus são a ponte para a memória».

O movimento eugénico na Alemanha era bastante activo, mesmo antes de os nazis chegarem ao poder. Com a instalação do regime, muitos eugenistas acabam nomeados para cargos importantes no Ministério da Saúde. Foi o caso de Karl Brandt, que chegaria a comissário do Reich para a Saúde e Saneamento.

A juíza desembargadora Margarida Blasco fala em dois momentos legislativos importantes no contexto eugénico nazi.

O primeiro, foi em Junho de 1933, com a publicação da lei para a prevenção de filhos de pais com doenças hereditárias, tendo sido decretada a esterilização obrigatória de indivíduos com deficiência e levados a cabo milhares de abortos em mulheres com desordens genéticas, deficiências mentais, físicas ou “raciais”. Brandt esteve activamente envolvido na aplicação da lei e foi ele o responsável, mais tarde, pela introdução da esterilização compulsiva. Em Setembro de 1939, Hitler nomeou-o para chefiar o programa de eutanásia, conjuntamente com Philipp Bouhler.

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O segundo marco legislativo dá-se um mês depois, em Outubro, com a publicação da lei que regulamentava o programa. Na mesma altura, o führer nazi, que tinha por hábito nunca assinar documentos, firmava uma ordem onde instruía os médicos a incentivar os pais a entregar as crianças que nasciam com deficiências e malformações a instituições que, supostamente, as tratariam. Era o início do T4 – abreviatura da morada Tiergartenstrasse, n.º 4, sede da instituição baptizada pelos nazis como Fundação de Caridade para Cuidados Institucionais – que oficialmente durou apenas dois anos, 1940 e 1941. Eufemisticamente chamado pelo regime de “eutanásia”, o T4 tinha a missão «de criar uma sociedade pura, para o que era essencial liquidar os elementos que não só a poluíam como viviam às custas do Estado, segundo considerava o regime. Promovia, por isso, o assassinato de crianças deficientes, físicas e mentais», recorda Esther Mucznik, presidente da MEMOSHOÁ – Associação Memória e Ensino do Holocausto. O consentimento dos tutores rapidamente desapareceu como medida necessária à aplicação da “eutanásia”: todos os menores de três anos de idade deveriam morrer. «As mortes eram registadas como pneumonia, as amostras de cérebro eram usadas para investigação clínica, o que pareceu atenuar a consciência dos julgados em Nuremberga: as crianças não tinham morrido em vão». Mais tarde, a medida estendeu-se aos adolescentes. Quando se negavam a entregar as crianças, era retirada aos pais a custódia de todos os outros filhos.

Este nunca foi um programa consensual, mesmo entre as fileiras nazis. Mereceu muitos protestos, levando ao seu encerramento oficial em Outubro de 1941. Mas os médicos foram deslocados para campos de concentração, onde continuaram a matar até 1945, alargando o programa a novas faixas etárias e com diferentes métodos. Primeiro fármacos, depois gás monóxido de carbono. O consórcio IG Farben fabricava essas substâncias. As oito companhias que o compunham eram apoiantes entusiastas do esforço de guerra da Alemanha nazi. Nesse contexto, tinham pequenos campos de concentração próprios, junto dos maiores, que lhes serviam de laboratório com cobaias humanas. Os presos eram submetidos às mais atrozes experiências, que poderiam ir da inoculação de vírus e bactérias para o desenvolvimento de doenças, à criogenização, ou ao esventrar e à amputação de membros… Os limites da investigação eram os limites da ética, ou seja, não existiam.

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20 de Novembro de 1945. Eram exactamente dez horas da manhã quando o juiz presidente Sir Geoffrey Lawrence bateu com o seu malhete na secretária no Palácio da Justiça em Nuremberga, onde tinha sido aprovada a lei que privou os judeus de todos os seus direitos e que assistira a grandiosos comícios do regime nazi. «A intenção foi mostrar ao mundo que o regime nazi e a democracia eram coisas muito diferentes. Daí ter sido dado a estes criminosos o direito a um julgamento. Foi intencional fazê-lo num dos bastiões da doutrina de Hitler», sublinha Margarida Blasco.

Os julgamentos ocorreram em duas partes. Os médicos foram julgados na segunda, juntamente com professores, juízes e polícias. Entre a classe médica, foram julgados 23 médicos e administradores hospitalares, em 140 dias de audiências, com 85 testemunhas. 16 réus foram dados como culpados, sete foram sentenciados à morte. Brandt foi um deles, acusado de crimes de guerra e contra a Humanidade, onde se incluíram a realização de experiências médicas com prisioneiros de guerra e civis de países ocupados, sem consentimento. Tinha 44 anos quando foi enforcado. Herman Schmitz foi sentenciado a quatro anos de prisão, por saque, e Fritz ter Meer a sete, por saque e escravidão.

Os julgamentos dos médicos e investigadores clínicos deram origem ao chamado Código de Nuremberga, sobre os aspectos éticos envolvidos na investigação em seres humanos. Medidas como o consentimento informado obrigatório, a realização de testes prévios em animais e a proibição do sofrimento emanam daqui. A História da Medicina mudou de rumo.
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