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30 agosto 2016
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«Ainda há SAP abertos em Portugal, o que é grave»

​​​​João Rodrigues fala do que correu melhor e pior na reforma dos cuidados de saúde primários.

Revista Farmácia Portuguesa - A Entidade Reguladora da Saúde diz que oito por cento dos internamentos nos hospitais do SNS seriam evitáveis se tivéssemos cuidados de saúde primários mais eficientes. Isto é um bom ou um mau número, quando nos comparamos internacionalmente? ​
João Rodrigues - É um bom número. Muito bom número. 

RFP - Mas temos cuidados de saúde primários eficientes?
JR - O problema é esse. 

RFP - Fala-se muito, mas o sistema ainda está demasiado centrado nos hospitais…
JR - Esse é que é o nosso grande problema. O hospital tem de ser visto por todos nós como algo de transitório, pontual, para uma necessidade emergente. E é preciso só para isto. É um recurso único, que tem de existir para essa situação muito pontual. Eu tenho que lá estar o menos tempo possível e ir-me embora. Se nós tivéssemos cuidados de saúde primários mais fortalecidos e mais qualitativos no seu desempenho, teríamos assessoria de proximidade nas diversas áreas de que necessitamos. Isto é o que nós já fazemos aqui, felizmente, em duas grandes áreas. 

RFP - Como funciona?
JR -  Na área da criança, a USF Serra da Lousã tem um protocolo com o Hospital Pediátrico de Coimbra. Temos um consultor pediátrico. Sempre que nós temos um caso na área da criança, ou do jovem, que nos levanta dúvidas, o que é que fazemos? Sexta-feira à tarde o caso é discutido pelos médicos e enfermeiros em conjunto. E se dessa reunião resulta continuarmos com dúvidas? Não conseguimos resolver o problema, pois temos dúvidas. O que fazemos? Em vez de enviarmos logo o doente para o hospital, mandamos o historial clínico, com as nossas dúvidas, para o pediatra consultor. Muitas vezes, ele responde e a solução está ao nosso alcance. Mas o pediatra também pode dizer assim: «Isto precisa de uma consulta de gastro de pediatria». E nós recebemos a informação dele, reunimo-nos para decidir, e ​podemos concordar ou não. Mas, se for para ir para o hospital, já está marcado. O que é que isto faz? Poupa circuitos e recursos. Nós fazemos formação e ele também, porque passa a ver outros casos. Isto chama-se consultadoria de proximidade. Não é pôr as pessoas no hospital. Elas só lá vão quando é necessário. 

RFP - Qual é a outra área em que trabalham directamente com o hospital? 
JR - Na cardiologia. Tudo o que é cardiologia é a mesma coisa. Nós analisamos o caso, discutimos, se achamos que é cardiologia, mandamos, com a história clínica, e o cardiologista de referência que nós temos no hospital diz: «Olha, este caso tem de fazer um cateterismo. Se concordarem, eu marco o cateterismo para a semana». Repare, o doente não vai à consulta de cardiologia. Vai directamente fazer o cateterismo. Sem tempo de espera. Se detecto um nódulo da tiróide, faço uma biópsia e o resultado levanta a suspeita de um carcinoma, eu tenho que dar segurança ao cidadão. Não o podemos deixar à espera um mês por uma consulta. Se conseguíssemos generalizar isto, reforçaríamos a confiança da população nos cuidados de saúde primários. 

RFP - Sim, mas isso já mudou muito. Há uns anos, as pessoas quando tinham um problema, procuravam logo consulta com o “especialista”. Iam ao Porto, a Coimbra ou a Lisboa. Entretanto, a Medicina Geral e Familiar (MGF) fez um grande percurso…
JR - As pessoas começam a saber que os médicos de família também são especialistas.

RFP - Houve uma revolução.
JR - Houve. Tem a ver com a qualidade. Quando eu comecei, há 25 anos, não se seguia diabéticos. Eu fui fazer formação a França. Os médicos de família não faziam formação em diabetes, mas hoje todos fazem. Hoje, o médico de família tem mais diabéticos do que qualquer endocrinologista. Hoje, o médico de família médio sabe mais de diabetes do que qualquer endocrinologista. Porquê? Porque é o dia-a-dia. Todos os médicos de família têm no seu ficheiro uma média de 100 diabéticos. Isso significa que têm de ter know-how, tê​m de se actualizar. A população não é ignorante, percebe o que se passa. Depois, temos o internato da especialidade, que passou de três para quatro anos. Os nossos jovens especialistas em MGF são de um nível científico elevadíssimo. O que nós precisamos é de parar de enviar 30 por cento lá para fora, porque não lhes damos condições para ficar cá. Este é o grande contra-senso: nós temos trabalho para todos os jovens médicos de família. Temos é de criar condições para os reter cá.

RFP - Há pouco, referiu que já se fez​ muitas coisas na MGF…
JR - O principal problema era a estrutura. Aqui na Lousã nós tínhamos um Serviço de Atendimento Permanente (SAP) 24 horas por dia. O que é que fazia? Fazia com que os doentes com AVC demorassem quatro, cinco horas para chegar aos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC). Nós tínhamos cinco, seis, dez ambulâncias por dia. Para fazer o quê? Retardar o diagnóstico e a terapêutica.

RFP - E agora?
JR - Os AVC e os enfartes agudos do miocárdio passaram a chegar numa hora aos HUC. O transporte de doentes urgentes/emergentes para a USF na prática acabou. Agora temos uma ambulância por semana. Isto está documentado. Localmente, fizemos um trabalho com os bombeiros. A integração dos 112 com os bombeiros melhorou. 

RFP - A emergência pré-hospitalar era o ponto crítico da reforma. Por outro lado, há problemas de saúde que não sendo urgentes exigem resposta no próprio dia.
JR - Qualificar a rede de emergência/urgência e dar acessibilidade aos cuidados de saúde primários, com a consulta de resposta às situações agudas no próprio dia. O que é que nós precisávamos, que foi o que eu sempre defendi? O dinheiro que nós gastávamos no SAP, que era 550 mil euros por ano, tinha de ter ficado na Lousã para os cuidados de saúde primários. Há dez anos, tínhamos cidadãos a ir às quatro da manhã marcar uma consulta. Fechou o SAP e num mês reduziu-se a lista de espera. O cidadão passou a vir normalmente às oito horas. E ganhou consciência. Se eu tenho uma precordialgia, devo telefonar ao 112. Não saio de casa, não vou ao médico vizinho do lado. São estes actos de cidadania que fazem a diferença. Esta é a diferença do salto que o país deu, em dez anos. E nós ainda temos SAP abertos neste país, o que é grave para a população. ​
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