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12 agosto 2019
Texto de Maria João Veloso Texto de Maria João Veloso Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Volta ao mundo num golpe de rins

​​​​​​​​​​Quando ficou doente decidiu levar a vida a viajar.

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Filipe, Catarina e Guilherme Almeida estão a concretizar um sonho. Provavelmente cruzam a ponte Carlos, em Praga, na República Checa, para mostrar ao filho Guilherme aquele castelo encantado que parece saído de um filme da Walt Disney.

O sonho-cliché passa pela cabeça de muitos: dar a volta ao mundo. Mais um casal de aventureiros que embarca numa viagem com o filho único de dois anos, dirão muitos. Assim seria, não fosse um pequeno pormenor. Filipe, hoje com trinta anos, sofre de nefropatia por IgA, uma doença renal auto-imune que o obriga a fazer hemodiálise três vezes por semana.

Primeira lição: perceber esta doença “palavrão”. Filipe compara-a a um passador de massa: «Quando escorremos a água, temos uns furinhos para não deixar a massa passar. Imaginem que esse passador tem uns buracos muito grandes. Passa a água e a massa». Era isto que acontecia com os rins de Filipe. Não filtravam o que deveria filtrar.  

A doença foi-lhe detectada aos 12 anos. Começou por ser uma constipação que teimava em não passar. Foi hospitalizado e depois de uns exames recebeu o diagnóstico: os rins não funcionavam a 100 por cento. Como foi descoberta num estado muito inicial foram tentadas algumas terapêuticas. «Sempre tive noção de que poderia não ter cura, mas até aos vinte e tal anos nunca ouvi falar de hemodiálise».

Com a doença praticamente adormecida, Filipe teve uma adolescência perfeitamente normal. Comeu fast food, passou noites sem dormir, na altura tocava piano – ainda toca – e dava concertos. «Vivia sem me lembrar da doença». Quer dizer, havia a previsão de que lá para os 40 anos poderia ter de iniciar a diálise. A necessidade apareceu antes dos 30.

A vida seguia o seu rumo. Juntos há meia dúzia de anos, Filipe e Catarina preparavam  o ninho para receber Guilherme, um filho muito desejado. O empresário tinha investido todas as economias numa empresa de turismo e, de repente, uma semana antes do filho nascer, chegaram os sintomas. «A meio de uma viagem, vomitei e no dia seguinte estava exausto».

Dois anos antes de chegar a esta situação, Filipe fazia análises com frequência e já as interpretava. Naquela época sentia-se bem, até que estranhou um valor e marcou uma consulta com um nefrologista (médico dos rins), que lhe disse, admirado: «Já devia estar a fazer diálise. Sente-se cansado, acorda maldisposto?» A resposta foi negativa, Filipe era uma pessoa que fazia o seu dia-a-dia normal na área do turismo. Quando naquele dia perdeu as forças, as palavras do médico ecoavam sem parar na cabeça. Uns dias depois dava entrada no Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, para pôr o cateter e fazer hemodiálise.


Dez dias antes do filho nascer, Filipe começou a fazer hemodiálise

«Comecei a fazer os tratamentos a 19 de Abril e o Guilherme nasceu a 29». Dez dias para chorar, para fazer todas as perguntas, para ir ao fundo e levantar-se.

«Quando o meu filho nasceu dei uma volta. Pensei: “Tenho 28 anos. Ainda tenho muito para viver. Se é a hemodiálise que me traz vida, vou aproveitar e não me vou entregar à doença”». O facto de ter uma empresa novinha em folha fê-lo escolher fazer os tratamentos da meia-noite às seis e meia da manhã. Deitava-se num cadeirão que dava para esticar as pernas como se fosse uma cama. «Nunca tive problemas de dormir onde quer que fosse, mas havia aquele restinho. O que faço aqui?» Acabou por encaixar a nova rotina. Costumam dizer a brincar que a Catarina é mãe solteira às segundas, quartas e sextas. 

Ao longo deste par de anos, Filipe apercebeu-se de que o tratamento de seis horas e meia é mais eficiente e elegeu esse. «A filtração do sangue é mais eficaz e o coração não tem de trabalhar a uma velocidade tão grande», aconselha Filipe, que considera o tratamento de quatro horas bastante mais duro.

Quando a diálise chegou, surgiu a questão: «Não vamos poder viajar mais?». Mas à medida  que Filipe se familiarizava com  o tratamento, o alter ego  de viajante falou mais alto e a viagem chegou num esboço, ainda que esbatido. Os entraves não tardariam. O maior de todos era a falta de informação que existe na Internet sobre locais de confiança para pessoas com insuficiência renal poderem fazer o tratamento.   


Na viagem pelo mundo, o casal está a criar uma base de dados onde os doentes renais podem encontrar clínicas de confiança para tratamento

Depois há aquele dia em que tudo se conjuga. A Catarina chega estafada a casa, farta das rotinas do dia-a-dia. E o Filipe pergunta em voz alta: «O que nos faz feliz?». A resposta sai-lhes natural: «viajar». E o projecto começa a ter pernas para andar. Na altura viajava muitas vezes para o Norte de Portugal e já fazia diálise. Surge então a ideia de dar a volta ao mundo e com ela fazer uma espécie de base de dados onde os doentes renais podem encontrar clínicas de confiança para fazer tratamento e nasce o allaboardfamily.com. «É fundamental explicarmos às pessoas que é possível sair da nossa clínica de sempre, ir para outro país e sentirmo-nos em casa».

Em Portugal, Filipe faz diálise numa clínica de Linda-a-Velha com sucursais em vários países do mundo, uma ajuda em todo o processo. O percurso foi estrategicamente planeado.  A primeira coisa é saber se há uma clínica de diálise não muito longe do lugar onde se vão instalar. «O corpo, depois do tratamento, ainda está a acordar». Por isso, uma semana em cada cidade é  o mínimo para Filipe conseguir fazer hemodiálise e ainda disfrutar da cidade, enquanto Catarina está encarregue de alimentar o Instagram e o blogue, postando fotografias de lugares incríveis e contando as aventuras próprias da viagem.

Além da vertente da diálise, no blogue também se encontra dicas pertinentes para andar pelo mundo com gente de palmo e meio.


Os pais esperam ensinar ao filho o melhor verbo para ser feliz: descomplicar

Quanto a Guilherme, vai alternando entre o colo do pai e da mãe, conhecendo novas culturas e, sobretudo, aprendendo na prática o melhor verbo para ser feliz: descomplicar. 

Depois desta viagem que começou em Março, nas Bahamas, a família Almeida espera que a experiência lhes abra portas no campo profissional, não descartando a possibilidade de ficarem a viver noutro país. Convém dizer que, para a concretização da empreitada, Catarina despediu- -se de um emprego seguro.  O casal vendeu a casa em que vivia e Filipe vendou a empresa. «O que aprendemos é que este é o nosso plano A. E só existe este. Quando se fala em plano B é porque o A já não é um sucesso».​​​

 

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