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25 março 2019
Texto de CE, CM, PV, RL, SB e VP Texto de CE, CM, PV, RL, SB e VP

Volta a Portugal profundo

​​​​​​​​​​​​​​​​Despovoamento, envelhecimento, pobreza e concentração de serviços jogam à sueca todos os dias.

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Nas próximas férias, imagine-se a dar uma volta a Portugal com paragens obrigatórias em Argozelo, Sendim, Vimioso, Vilar de Maçada, Campeã, Escariz, Talhadas, Sandomil, Melo, Mões, Figueira de Lorvão, Vila Nova do Ceira, Albergaria dos Doze, Pedrógão Grande, Estreito, Vale de Prazeres, Carvalhal, Verdelho, Cano, Gáfete, Alcáçovas, Alvalade, Montes Velhos, Figueira dos Cavaleiros, Estoi, Rabo de Peixe e Curral das Freiras. Das altas montanhas às ilhas, a sua família vai ver burros, falcões, golfinhos e outros animais selvagens, antigos campos agrícolas mascarados de mato, algumas crianças à solta, muitos velhos vestidos como há trinta anos.



Provará bom vinho e comerá manjares de rei em toalhas de papel e de plástico: postas de vaca submetida a rigorosa dieta de pasto, sopas com ervas desconhecidas, dezenas de cozidos e quase cem bacalhaus, cracas com sabor a mar. Para ser bem servido, deverá parar, conhecer as pessoas nos olhos, abrir mão de cinco dedos de conversa, falar mirandês, "rapexim" e várias outras línguas e dialectos. Pelo caminho encontrará ingleses, holandeses e imigrantes dos cinco continentes.

Ficará muitas vezes longe de tudo.

Terá sempre uma farmácia perto de si.

Este último facto pode mudar em pouco tempo. Nas próximas páginas, vamos perceber porquê.

Para lá do Marão, as farmácias são pontos de socorro. Em Argozelo, Bragança, só há médico uma vez por semana. «Antes de irem à urgência, muitas vezes as pessoas vêm aqui. Quando eu posso ajudar, ajudo», relata Maria Julieta, directora-técnica da Farmácia Ferreira.


«Se fecham a farmácia e me dá uma crise de diabetes?», pergunta Lurdes Albino. E dá uma resposta preocupante

Maria de Lurdes Albino luta contra o risco de encerramento da Farmácia de Sendim como contra a própria morte. «Pode-me acontecer ter uma crise de diabetes. O que é que têm de fazer os bombeiros? Levar-me daqui a Bragança. São 90 quilómetros. Chegamos a meio do caminho e a Maria de Lurdes Albino foi embora», descreve aos jornalistas.


Os sendinenses só encontram na farmácia profissionais de saúde sempre disponíveis para os aconselhar

Em Sendim, a extensão do centro de saúde até está instalada num edifício amplo e moderno. O problema é que as doenças não se tratam com arquitectura. Só lá trabalha um médico, que tem de suprir falhas noutras terras do agrupamento. Atende exclusivamente por marcação, em alguns dias da semana. Não há consultas de urgência. Em caso de doença súbita, as pessoas recorrem à farmácia. «Tem a mais-valia de as pessoas virem a pé, não precisam de estar a chamar o táxi, nem os bombeiros», explica Carlos André, ele próprio bombeiro voluntário.


A farmacêutica Cândida Viana é uma sendinense de gema e coração, que nas horas livres se dedica à protecção dos burros autóctones

A farmacêutica da terra é uma sendinense de gema e coração, que nas horas livres se dedica à protecção dos burros autóctones. Fala da falta de médicos e do encerramento de serviços com a amargura de toda a gente que aqui vive. «Os centros de saúde, nestas zonas, não dão resposta às necessidades das pessoas», desabafa Cândida Viana.

Aqui, o povo é uma família unida. No Natal, reúne-se à volta de uma fogueira no adro da igreja. Agora, está a assinar em bloco a petição “Salvar as Farmácias, Cumprir o SNS”, que sugere aos deputados o aproveitamento das farmácias para «intervenções em Saúde Pública, com particular atenção aos doentes crónicos». A directora-técnica da Farmácia de Sendim está disponível para desenvolver «valências que resolvam as necessidades das pessoas». Fala com desconfiança, sintoma característico do isolamento, e esperança, o respectivo antídoto. 


O presidente da Câmara de Gouveia espera «que o poder central reconheça o serviço público das farmácias»

Muitos autarcas subscreveram o documento à Assembleia da República. «Eu espero que toda esta campanha tenha como bom resultado o poder central olhar para este serviço que é prestado pelas farmácias, pelo menos aqui, nestas zonas do Interior, como um efectivo serviço público que é necessário manter», declara Luís Marques, presidente da Câmara Municipal de Gouveia. «Queremos envolver todos para que estas pequenas farmácias sejam mais apoiadas», justifica Aquilino Ginjo, presidente da União de Freguesias de Sendim e Atenor. «Devíamos estar, de facto, em pé de igualdade perante os da cidade. É um pouco difícil, mas termos alguns serviços já seria bom», reivindica Fernando Sousa, presidente da Junta de Freguesia de Vilar de Maçada.

Os idosos com pensões de sobrevivência e sem carro próprio são quem mais sofre com o encerramento de serviços e a respectiva concentração nos pequenos e médios centros urbanos. «Se esta farmácia fechasse era um problema, porque tinha de ir a Vila Real de propósito», desabafa Leónida Rebelo, que vive na Campeã, aldeia entalada entre as serras do Marão e do Alvão. «Não temos transportes públicos praticamente nenhuns. Era muito difícil para os nossos idosos deslocarem-se», concorda, ao seu lado, Lúcia Rego.

O ar é puro, mas aqui cada quilómetro é mais demorado. Andamos quarenta para a raia, até Vilar de Maçada, onde temos a sorte de ouvir o problema já traduzido em linguagem económica. «Tinha de pagar a uma pessoa para me ir lá levar. Acha que pagar medicação e transporte dá resultado?», pergunta Cecília Menezes, na Farmácia Nova. Já em Sandomil, mesmo à entrada do Parque Natural da Serra da Estrela, somos novamente recordados do sufoco da imobilidade por uma utente da Farmácia do Alva. «Se fechasse, para onde é que íamos? São Romão, Oliveira? É muito longe, ainda são uns quilómetros. Daqui para Seia também são uns poucos. Se precisasse de lá ir…era complicado. Não tenho carta, não tenho carro», descreve Conceição Duarte. De Norte a Sul, sempre o mesmo quebra-cabeças, parece uma doença crónica. «Se não fosse esta farmácia tínhamos de ir a Ferreira. Ir para Ferreira buscar medicamentos e depois vir... e nem todas as pessoas têm esse acesso, de ir a Ferreira, porque não têm carro, não têm nada», especifica Joaquim Dores na Farmácia Parreira Cardoso, de Figueira dos Cavaleiros, distrito de Beja.


As farmácias do Interior são a porta de entrada no sistema de saúde que resta aos mais desfavorecidos

O Interior, como ensina o sociólogo António Barreto, é um conceito muito relativo. Visto pelo lado dos problemas característicos do despovoamento, estende-se quase até ao litoral e chega a molhar os pés na água do mar. Por exemplo, Escariz, freguesia do concelho de Arouca. Nos últimos censos à população portuguesa, realizados há oito anos, tinha 2.222 habitantes, resultado auspicioso pelos critérios da sabedoria popular. O problema está noutro número, que saiu agora no jornal: Há 30 farmácias em risco no distrito de Aveiro. As pessoas reuniram-se da Farmácia Central para esconjurar qualquer possibilidade de encerramento. «Era um crime isso acontecer», afirma Norvinda Perestrelo, que tem experiência de direcção numa IPSS local. «Nem quero que me passe tal coisa pela cabeça», concorda a septuagenária Natália Martins. Conta que muitas vezes passa «o dia no centro médico sem arranjar consulta». As pessoas lutam pela farmácia porque lhes oferece «acesso permanente a um primeiro conselho, que funciona», na expressão do arouquense Miguel Valente.


A farmácia do Curral das Freiras luta contra a crise desde que abriu, há 17 anos. «É difícil sobreviver», desabafa Ana Ornelas, a farmacêutica proprietária

O problema é que 680 farmácias, no Interior geodésico e na periferia económica do litoral, enfrentam processos de insolvência e de penhora. Em muitas outras, farmacêuticos e ajudantes técnicos multiplicam esforços e desdobram os próprios horários de trabalho para não caírem também nos tribunais. «De que me vale ter uma hora de almoço, se é a essa hora que a farmácia tem mais utentes?», pergunta a directora-técnica da Farmácia do Vale, no Curral das Freiras. Luta contra a crise desde que abriu portas, há 17 anos, numa das freguesias montanhosas mais deprimidas da Madeira. «É difícil sobreviver num contexto destes», adverte Ana Ornelas, farmacêutica com uma vocação de ferro.


O farmacêutico Paulo Nogueira faz muitas contas para manter uma farmácia em Talhadas, Sever do Vouga

Também em Talhadas, concelho de Sever do Vouga, o proprietário faz muitas contas para manter as portas abertas. «É uma farmácia que se vai mantendo sustentável a muito custo porque serve uma população pequena e de recursos limitados», desabafa Paulo Nogueira, director-técnico da Farmácia União. A freguesia está a perder gente desde os anos sessenta. Cada vez mais jovens têm ido trabalhar para fora. Sem esses casais, nascem menos crianças. Aconteceu o mesmo em Oleiros. «Basta dizer que a escola primária chegou a ter 105 alunos e agora tem 12 ou 13», especifica Maria de Fátima Gonçalves, farmacêutica proprietária na aldeia de Estreito.


A farmácia de Figueira de Lorvão dispensa medicamentos a crédito a pensionistas com 200 e 300 euros de reforma

Ficam os reformados, com baixo poder de compra. As farmácias procuram dispensar-lhes os genéricos e os medicamentos mais baratos. Mesmo assim, é custoso para os pensionistas rurais levantarem por completo as prescrições médicas. «Muitos recebem pensões de duzentos e trezentos euros», conta Olinda Marques, directora-técnica da Farmácia Luz Marques. Como em Figueira de Lorvão, Penacova, não há banco, os idosos vão à farmácia trocar os vales de reforma. «Sabemos quando as pessoas não podem pagar e acabamos por dispensar muitas vezes a crédito, porque é uma necessidade», justifica a farmacêutica.


A farmacêutica de Albergaria dos Doze acaba de hipotecar a casa por causa da farmácia

O Estado liberalizou a propriedade das farmácias em 2007. Doze anos depois, muitos farmacêuticos, sobretudo na província, resistem a desligar a realização económica da vocação profissional e do serviço às populações. «Hipotequei a minha casa para meter aqui 100 mil euros. Foi a última coisa que fiz», conta Teresa Guapo, proprietária e directora-técnica da Farmácia Albergariense. É mais um caso em que utentes e farmacêutica comungam do discurso e da resistência. «Numa cidade, se uma farmácia fecha pode não fazer diferença. Mas aqui, fecham-nos o centro de saúde, fecham-nos a farmácia… E a seguir, vamos todos viver para a cidade?», queixa-se uma mãe de família. «Neste momento, estamos sem médico. Temos uma médica que está a 15 quilómetros», denuncia a farmacêutica de Albergaria dos Doze.

Despovoamento, envelhecimento, pobreza e concentração de serviços jogam todos os dias à sueca. Combinam os truques e ajudam-se uns aos outros até ficarem viciados. O distrito da Guarda começou a perder população nos anos sessenta. Chegou a ter 300 mil habitantes, agora terá metade. O êxodo e o abandono dos campos deixaram o mato levantar cabelo na floresta, com as trágicas consequências conhecidas de todos. Em Melo, a Farmácia Central ardeu por completo no grande incêndio de 15 de Outubro de 2017. No dia seguinte, já estava a dispensar medicamentos na junta de freguesia.

Numa terra assim, a farmácia não pode parar. É indispensável por garantir o acesso seguro ao medicamento, em particular a doentes crónicos e dependentes. Para além disso, na prática, funciona como a porta de entrada no sistema de saúde que resta aos mais desfavorecidos. «Há pessoas que vêm à farmácia e nos pedem para telefonarmos a marcar meios de diagnóstico, porque não conseguem de todo fazer essas marcações. Somos nós, no dia-a-dia, que vamos fazendo uma triagem do que pode ou não pode acontecer», descreve Isabel Coelho, directora-técnica da Farmácia Central, que investiu tudo em novas instalações. A população retribui a dedicação com assinaturas em massa à petição “Salvar as Farmácias, Cumprir o SNS”. «A farmácia é um bem que temos e queremos salvá-la», declara a utente Rosa Coelho.


Arminda Silva quer salvar a farmácia de Pedrógão Grande

Em Pedrógão Grande, o povo une-se em defesa da Farmácia Baeta Rebelo. «Porque é a única e somos muito bem atendidos. Não a levem de cá para fora, senão estamos mal», declara Fantina Lima no dia da sua assinatura. Nas terras marcadas pela tragédia, a resistência das farmácias parece assumir um significado especial. «Espero que não feche e que continue com boa-disposição e animação, como tem sido até agora», afirma Arminda Silva. «Já a de Pedrógão Pequeno fechou há uns meses atrás, mas eu sempre usei esta porque a simpatia é muito agradável», testemunha João Silva.

Uma farmácia é especialmente preciosa nas terras traumatizadas pelo fecho em massa de escolas, correios, bancos e serviços de saúde de proximidade. Em Alcáçovas, a petição para salvar as farmácias mobilizou toda a gente. «As pessoas já sentiram o que foi estarem quase a perder a estação de correios, o que é provavelmente ficarem sem o posto da GNR, o que é não terem um centro de saúde que lhes dê resposta», expõe Sara Grou, directora-técnica da Farmácia da Misericórdia de Alcáçovas.



«Hoje em dia, com a desertificação do Interior e os serviços públicos a fechar, as farmácias mantêm-se como um pólo de confiança da comunidade. São dirigidas por profissionais e amigos que estão junto das comunidades, o que nos dá a segurança de um atendimento personalizado», descreve Ana Vieira. Faz questão de aviar todas as receitas médicas na pequena Farmácia Higiene, do Verdelho, só para ajudar os proprietários a sair da crise. «É fundamental termos um técnico com quem se pode conversar, sobre uma “dorzeca” que apareceu e não justifica uma ida ao médico», explica esta educadora de infância reformada, numa terra em que o centro de saúde fechou há sete anos.

​A confiança nos farmacêuticos todos os dias evita centenas de consultas de urgência desnecessárias. «As pessoas sentem-se à vontade. É à farmácia que se dirigem primeiro, antes até de irem ao médico. Vêm aconselhar-se com o farmacêutico, e o farmacêutico depois encaminha-as para o médico se for caso disso», descreve Guiomar Paulo, em Estoi, uma aldeia no coração do Algarve. No Carvalhal, Abrantes, que tem 722 habitantes, passa-se o mesmo. «O doutor Rei é quase como um pai para as pessoas.


No Carvalhal, Abrantes, o povo não quer perder o farmacêutico: «O doutor Rei é quase como um pai para a gente»

Quando se vêem em aflições vão quase sempre primeiro a ele», conta Gilberto Martins.

«Agradecia que não fechassem. A farmácia faz aqui muita falta. Muita, muita falta. Onde há quatro, cinco, seis farmácias, nem que feche uma ficam as outras. Agora, esta aqui é uma desgraça se fecha», expressa Maria Lucília Rocha, que assinou a petição na Farmácia Matias Pereira, de Mões, concelho de Castro Daire. «A farmácia dá-nos aqui muito jeito, porque é a única que temos», sublinha Inês Rebelo, utente da Farmácia Matos, de Gáfete, concelho do Crato.

Os doentes crónicos afligem-se particularmente com o encerramento dos serviços de proximidade. «A farmácia aqui é a melhor coisa, realmente», desabafa Maria Lurdes Santos, que tem esclerose múltipla e vive em Vila Nova do Ceira, Góis. «O meu marido é doente crónico há dez anos e esta farmácia sempre me deu um apoio incrível», testemunha Maria Manuela Alvoeiro, também utente da Farmácia Frota Carvalho. A octogenária Mariana Rebelo já teve um acidente vascular cerebral e um episódio agudo de fibrilação auricular. Sofre ainda de glaucoma e de retinopatia, patologias graves que lhe ameaçam a visão. É «raro o dia» em que não vai à Farmácia Mendes Dordio levantar os medicamentos para o coração, controlar a tensão arterial, desabafar e ouvir uma palavra de ânimo. «Mal de mim e pior de muitos se esta farmácia acaba. Mal de mim e dos outros», desabafa, ao seu lado, Mariana Rebelo, outra octogenária dependente desta farmácia de Cano, vila do concelho de Sousel com quase metade da população acima dos 65 anos. «Ouvi dizer que estas farmácias pequenas iriam acabar. Isso para nós era catastrófico. Não tinha sentido nenhum», adverte Maria Emília Sales, que subscreveu a petição na Farmácia Oliveira, de Montes Velhos, Aljustrel.


«Esta campanha agitou as consciências», considera Gertrudes Santos

Até ao dia 15 de Março, mais de cem mil pessoas já tinham assinado a petição. «Esta campanha pôs as pessoas a falar do problema. Aquele cartaz “Já imaginou perder a sua farmácia?” agitou as consciências», discorre Gertrudes dos Santos, directora-técnica da Farmácia Central, em Alvalade, Santiago do Cacém. Uma sua homónima, Gertrudes Prates, deixou aos microfones dos jornalistas a pergunta de todos os subscritores ao Parlamento: «Se a farmácia fecha, o que será de nós?».​