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11 março 2019
Texto de Maria Jorge Costa Texto de Maria Jorge Costa Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes

Ventre de estrelas

​​​​​​​​​​«O mais importante é aceitar a doença».

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​Vera Gomes, 37 anos, é consultora em Bruxelas para questões relacionadas com o espaço sideral. Por razões de confidencialidade contratual não pode revelar as instituições para quem trabalha. Acorda todos os dias às seis e meia da manhã para passear o cão. Às 08h30 está no escritório a trabalhar, no centro de Bruxelas. No Verão vai de bicicleta para o trabalho. Se não tiver viagens profissionais, passa o dia em reuniões ou a trabalhar em documentos, apresentações, respostas a e-mails. Traz comida de casa e almoça rapidamente para conseguir dar resposta a tudo até às seis da tarde. Parece um dia igual ao da maioria das pessoas, mas chegar cedo a casa é uma questão de sobrevivência.

Sofre de colite ulcerosa, uma doença inflamatória do intestino, que há dois anos a atirou para uma cama de hospital em situação crítica. Uma das características da doença é o cansaço extremo. «Muitas vezes, quando chego a casa aterro no sofá. Só me levanto para ir à casa de banho e ir dormir», explica a analista em questões do espaço. Sendo uma doença do intestino, não é difícil perceber que estes doentes passam a vida na casa de banho. Não é um tema fácil mas com a energia que a caracteriza Vera fala das coisas sem problemas. Nos dias mais difíceis actualiza o “diário do cocó”, instrumento que aconselha os doentes a usar, por ser o melhor barómetro de avaliação do estado da doença.

Vera Gomes convive com a doença há dez anos e conta como soube da notícia. «O dia em que recebi o diagnóstico foi muito agridoce. É aquela sensação de "yes, finalmente sabem o que é e isto agora vai tudo às maravilhas, não tarda nada estou aí pronta para as curvas". Depois percebi que é para a vida, não tem cura. Tem altos e baixos. Actualmente estou controlada e consigo ter uma vida quase normal», diz a especialista no espaço sideral.

Recebeu o diagnóstico aos 27 anos. «Estava no auge da minha carreira profissional em Portugal, no auge da minha juventude e de repente a cabeça funciona mas o corpo não responde», explica. «É querer fazer coisas e não conseguir, é o cansaço permanente e mesmo a dormir 12 horas não conseguir que passe. São as idas constantes à casa de banho. Os colegas já me procuravam mais na casa de banho... iam primeiro à casa de banho procurar-me e só depois à minha secretária... Ter de gerir isto tudo e tentar encontrar uma nova forma de viver é muito, muito difícil», reconhece.


Fez uma petição pelos direitos dos doentes, aprovada por unanimidade no Parlamento​

Vera recusou as limitações da doença. Manteve a carreira, candidatou-se há cinco anos e meio a um lugar em Bruxelas para a área que a fascina desde miúda: o espaço. Criou um site e abriu um grupo de Facebook para os doentes poderem desabafar, trocar experiências e informações. Escreveu um livro sobre a doença, com dicas práticas, conselhos de médicos e testemunhos de outros doentes: “Conviver com as Doenças Inflamatórias do Intestino”. Lançou uma petição para melhoria das condições de vida dos doentes, para a qual reuniu mais de 11 mil assinaturas. Conheceu o namorado na Bélgica, com quem vive. «A minha última conquista foi poder ter um cão. Parece uma coisa pequena, mas até ao início de 2018 seria impossível», conta. Com sentido de humor, diz ter escolhido o Nano sem saber que vinha doente. «Com uma doença do intestino. Não podia ser mais irónico. Felizmente o caso dele era bacteriano e resolveu-se», explica.

Sobre a doença, diz que «não é o fim do mundo, mas é um mundo novo». E dá conselhos: «O mais importante de tudo é aceitar a doença. Perceber que se tem de contar com a medicação para sempre. E encontrar uma equipa médica em quem se confie». A analista política recusou tudo durante demasiado tempo. E pagou por isso.

Assim que recebeu o diagnóstico começou a fazer medicação personalizada. «É importante ser acompanhado por um gastroenterologista, especialista em doenças inflamatórias do intestino, que sabe manipular a medicação de acordo com o doente», alerta Vera Gomes. Quando surgiram os sintomas sabia-se que havia uma inflamação no intestino, mas desconhecia-se se era colite ou Doença de Crohn. «Continuei a piorar, o meu estado de saúde agravou-se. Depois passámos para os corticóides. Percebemos que tudo o que seja medicação de aplicação local, ou seja, enfiar pelo rabo, comigo não resulta e agrava os sintomas».

Fez medicação oral, até chegar à cortisona. Nessa fase passou de 35 kg para 70 kg. Olhava-se ao espelho e não se reconhecia. «Não é fácil. Lembro-me de estar com 35 kg e tapar as mãos com as mangas para não ver os ossos. Eu via as minhas costelas todas. Depois, de repente, estava completamente obesa, não conseguia ir ao supermercado», recorda. Os amigos iam às compras por ela porque estava sempre muito cansada.

A medicação demora muito tempo a fazer efeito. Pode demorar anos até se encontrar uma combinação de medicação que funcione para cada doente. Aos primeiros sinais de melhoria, Vera deixava de tomar os medicamentos. Procurou abordagens não convencionais e acabou com uma anemia perniciosa (deficiência de vitamina B12) na sequência de uma dieta de grande restrição alimentar.


Vera Gomes aprendeu com os erros. Esteve sem tomar medicação regular quase seis anos​

Entrou em crise, teve de usar fraldas e não conseguia sair de casa. Nesse momento percebeu que não podia continuar. Procurou um médico com quem se sentisse confortável. «A relação médico/doente é muito importante. Não há problema em pedir uma segunda opinião. 

O médico que me segue foi o segundo aqui na Bélgica, precisamente porque não me senti confortável com o primeiro», sublinha. O médico leu os relatórios, viu os exames e foi lapidar: a crise que Vera vivia era diferente de todas as anteriores por ter estado demasiado tempo sem tratamento adequado. Vera esteve sem medicação ou com medicação ocasional mais de cinco anos. A parte determinante da consulta foi a confirmação de todas as asneiras que tinha feito antes. Começou a fazer medicação, foi internada e esteve cinco meses sem trabalhar. «É muito complicado, sobretudo sendo eu tão activa. Foi muito difícil de gerir», confessa. Mas desde esse momento não voltou a repetir asneiras e em Janeiro de 2017 começaram a surgir os sinais de estabilidade.



E passou de 15/20 comprimidos por dia para dois. «Sem a medicação eu não conseguia estar aqui bem-disposta, com este ar de quem dormiu 24 horas e esteve num spa. Seria impossível. Ainda hoje, quando falo com a equipa de médicos que me segue, digo: se tiver de escolher entre controlar a dor nas articulações ou escolher o intestino, opto pelo intestino. Com as dores nas articulações, mais rápido ou mais devagar ainda me mexo. Se o meu intestino voltar a entrar em crise, eu deixo de ter vida. Já perdi quase dois anos por causa de uma crise e não quero perder mais», garante. A vida normal segue em casa a partir das seis e meia. Três vezes por semana tem sessões de treino e fisioterapia, nos outros dias dedica-se às actividades em Portugal para ajudar os doentes (e-mails, contactos, posts no blogue, respostas a pedidos de informação). «A seguir ao jantar é tempo de sofá e repouso em família, embora por norma acabe por adormecer de cansaço... A hora de deitar é por volta das 22h30, para garantir que consigo ter sete a oito horas de descanso para aguentar o dia seguinte».

Neste momento consegue comer quase tudo. Há cinco anos não era assim. Diz que a medicação actual, um imunossupressor, lhe devolveu a vida. «Como os dois gostamos de cozinhar, há sempre receitas novas, nem sinto que tenha de ter cuidado com a comida. Sinto-me uma pessoa perfeitamente normal em casa», conclui. A doença não a impede de sair com os amigos ou de viajar. Há pouco tempo foi com o namorado para o Peru. Tem um sistema de sobrevivência para viagens longas: fraldas, toalhitas, mudas de roupa. Não é a doença que a impede de ver o mundo.
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